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Ernildo Stein (1983:30-52) – As intuições heideggerianas e o movimento fenomenológico (7-8)

sábado 2 de dezembro de 2023, por Cardoso de Castro

7 A fenomenologia heideggeriana   se tornaria uma meditação da finitude. A ideia de verdade e não-verdade, de velamento e desvelamento aponta para a incompletude de toda a compreensão do ser e da verdade na medida em que se dão na facticidade do ser-aí. Mas esta finitude da compreensão não é simplesmente uma limitação nas possibilidades de objetivação. Heidegger se move num terreno anterior à relação sujeito-objeto; aí nem é possível a ideia de frustração diante do todo inobjetivável. Ele procura pensar o ser e a verdade da facticidade do ser-aí como distintivos desta facticidade e marcas da finitude. Por isso ele renuncia às possibilidades da dialética e da solução teológica, porque não contribuem para a compreensão da finitude. “O entrelaçamento de ocultamento e desocultamento, presença e ausência, que Heidegger procura pensar, não é, neste sentido, “dialético” e não é pensado como uma experiência limite de uma “presença originária” e de uma verdade “absoluta” [1].

A finitude da compreensão do ser em que se movimenta o ser-aí se revela precisamente no seu modo de acesso ao ser e no modo de acesso do ser a ele. Na compreensão do ser prevalece o velamento; o homem somente compreende o ser ligado ao velamento imposto pela finitude do próprio homem. A compreensão do ser é o sinal da finitude. A reflexão transcendental   é apenas um álibi da finitude e uma tentação de fugir ao âmbito ambivalente do velamento e desvelamento em que mergulha a facticidade do ser-aí. O horizonte transcendental revela uma indigência do ser-aí e a sua condenação à finitude. “Para que se tome a sério a finitude como o chão de toda a experiência do ser parece-me essencial o fato de ela se negar toda a complementação dialética. Sem dúvida, é “evidente” o fato de que a finitude é uma determinação privativa do pensamento e que enquanto tal pressupõe uma infinitude, talvez também o seja o fato de que a “imanência fenomenológica” pressupõe seu oposto, a transcendência, ou a história (de outra maneira) a natureza. Quem negará isto? Acho, porém, que de Kant   aprendemos, de uma vez para sempre, que tais caminhos “evidentes” do pensamento não são capazes de mediar o conhecimento possível a nós entes finitos. A dependência da experiência possível, a legitimação através desta experiência, permanece o alfa e omega de todo o conhecimento que obriga” [2].

É preciso ter claramente presente a opção de Heidegger por uma teoria do ser que se desenvolve, mediante o método fenomenológico, na finitude da compreensão, no “a caminho” de um questionamento sempre ligado ao tempo. Heidegger permanece na diferença imanente do ser como velamento e desvelamento e não é intenção sua resolver o problema metafísico pelo seu movimento na finitude. Nele está, sobretudo, a busca de uma fidelidade radical ao ser na sua ambiguidade, no seu vínculo com o homem. Não se trata de fechar os horizontes possíveis da transcendência; positivamente está em questão um debruçar-se sobre os fundamentos em que mergulha toda a consciência transcendental, o escavá-los mostrando a positividade da finitude. Disso só podia resultar um choque frontal com as intenções de Husserl  .

8 Apesar da amizade que os ligava, falam com suficiente clareza as críticas à posição de Husserl, contidas numa carta de Heidegger ao Mestre, opinando sobre o artigo “Fenomenologia” para a Enciclopédia Britânica. Eis como, já em 1922, Heidegger via o problema da fenomenologia transcendental: “Concordo que o ente no sentido do que o senhor designa “mundo” não pode ser explicado, em sua constituição transcendental, pelo retorno a um ente da mesma espécie. Assim, entretanto, não se diz que o que constitui o lugar do transcendental não seja de modo algum um ente; o problema que se anuncia é o seguinte: qual é o modo de ser do ente, no qual se constitui “mundo”? Este é o problema central de Ser e Tempo  , isto é, uma ontologia fundamental do ser-aí. Trata-se de provar que o modo de ser do ser-aí humano é totalmente diferente do modo de ser dos outros entes e que, precisamente, enquanto é o que é, esconde em si a possibilidade da constituição transcendental. Esta é uma possibilidade central da existência do fáctico em si mesmo. Esta existência, o homem concreto em si mesmo, jamais é um “fato mundano real”, porque o homem jamais é puramente subsistente, mas, existe. E o “admirável” consiste no fato de que a constituição existencial do ser-aí possibilita a constituição transcendental de tudo o que é positivo. (…) Aquilo que constitui é não um nada, portanto, algo e um ente, ainda que no sentido do positivo. A pergunta pelo modo de ser do próprio constituinte não pode ser evitada. O problema do ser tem, portanto, referência universal ao constituinte e constituído. Que significa ego   absoluto à diferença do puramente anímico? Qual é o modo de ser deste ego absoluto - em que sentido é o próprio eu fáctico; em que sentido não o é? Qual é o caráter da posição em que o ego absoluto é posto? Em que medida não há aqui uma positividade?” [3]. Estas perguntas de Heidegger mostram, com suficiente clareza, como o problema do mundo da vida estava na raiz da discordância entre as concepções de Husserl e Heidegger no referente à fenomenologia e à tarefa do labor filosófico.

Portanto, ainda que tenha sido decisiva a presença de Husserl na elaboração das intuições heideggerianas, nos momentos decisivos os caminhos se separam. A fenomenologia que Heidegger elaborou, premido por grandes interrogações que trazia de sua juventude, se constituiria no instrumento que aprofundaria sempre mais as diferenças entre os dois filósofos. Por isso Husserl poderia dizer, diante da acolhida triunfal de Ser e Tempo, cujo autor Husserl acusava de “ter caído no antropologismo transcendental” [4]: “Filosofia como ciência, como ciência séria e exata, sim como ciência apoditicamente exata - o sonho está no fim.” [5]. A “tarefa infinita” deveria esperar por melhores tempos, porque, justamente, viera perturbar o projeto da fenomenologia transcendental aquele de quem Husserl poucos anos antes dissera: “A fenomenologia - isto somos eu e Heidegger”.

Em 1962, voltando-se em seu espírito para a fenomenologia, Heidegger disse: “Hoje parece que o tempo da filosofia fenomenologica passou. Já é julgada como algo do passado, que apenas é consignado ainda historicamente ao lado de outros movimentos da filosofia. Entretanto, em sua essência a fenomenologia não é um movimento. Ela é a possibilidade do pensamento - que periodicamente se transforma e somente assim permanece - de corresponder ao apelo do que deve ser pensado. Se a fenomenologia for assim compreendida e guardada, então pode desaparecer como expressão em favor da questão do pensamento cuja manifestação permanece um mistério” [6].


Ver online : Ernildo Stein


STEIN, Ernildo. A questão do método na filosofia: um estudo do modelo heideggeriano. Porto Alegre, Movimento, 1983


[1Gadamer, H-G. - Phaenomenologische Bewegung, p. 39

[2Gadamer, H-G. - Phaenomenologische Bewegung, p. 40

[3Husserliana IX, pp. 601-602

[4Husserliana V, p. 140

[5Husserliana VI, Beilage XXVIII

[6Mein Weg in die Phaenomenologie, em Zur Sache des Denkens, p. 90