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A Questão do Método na Filosofia

Ernildo Stein (1983:30-52) – As intuições heideggerianas e o movimento fenomenológico (6)

Um Estudo do Modelo Heideggeriano

quarta-feira 6 de outubro de 2021, por Cardoso de Castro

O que se realiza para a fenomenologia dos atos conscientes, como o auto-mostrar-se dos fenômenos, é mais originariamente pensado por Aristóteles e por todo o pensamento e existência dos gregos como aletheia  , como desvelamento do que se presenta, seu desocultamento, seu mostrar-se. O que as investigações fenomenológicas re-descobriram como a atitude básica do pensamento se apresenta como o traço nodal do pensamento grego e talvez mesmo da filosofia enquanto tal. Quanto mais isto se clarificava tanto mais insistentemente voltava a pergunta: A partir de onde e como se determina o que, segundo o princípio da fenomenologia, deve ser experimentado como “a coisa mesma”? É ela a consciência e sua objetividade, ou é o ser do ente em seu desvelamento e velamento?

6 Para melhor penetrarmos no elemento profundo que separou os caminhos da interrogação de Heidegger e Husserl  , vamos analisar mais em detalhe o problema central do mundo da vida. Neste conceito se fixa, em última análise, uma preocupação comum entre os dois filósofos. Para Heidegger a facticidade da vida, o ser-no-mundo, o mundo da vida será o ponto de partida necessário para sua interrogação, e, ao mesmo tempo, o elemento fundamental que sustenta sua crítica à fenomenologia transcendental   de Husserl. Para este o problema do mundo da vida será o fator decisivo que o leva a uma revisão da radicalidade de sua redução e, portanto, dos fundamentos de sua fenomenologia transcendental. A questão que provocou discussão e está ainda insolvida se resume na seguinte pergunta: Quem colocou o problema do mundo da vida em primeiro lugar? Heidegger ou Husserl? Este usara o termo já por volta de 1920 [1] mas somente desenvolveu a problemática que envolve a partir de 1934 [2]. Ser e Tempo   de Heidegger tem na ideia de mundo da vida (ser-no-mundo) um de seus elementos axiais. A obra é inconcebível sem a ideia fundamental de ser-no-mundo. E é precisamente nesta ideia que se funda toda a crítica latente à insuficiência ontológica da redução transcendental de Husserl, que perpassa Ser e Tempo. Por outro lado, a obra de Husserl, A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental, obra que o fundador da fenomenologia escreveu a partir de 1934, preocupa-se intensamente com o problema do mundo da vida; a análise representa sob muitos aspectos uma tentativa de resposta às alusões e críticas latentes que perpassam Ser e Tempo.

Para compreendermos como se instalou a divergência entre Husserl e Heidegger a partir da ideia de mundo da vida, vamos retroceder em nossa análise até o momento em que se prepara esta questão nos gregos. Mostrar-se-á como, desta maneira, a ideia do mundo da vida é o elemento axial da obra de Heidegger e a base para a crítica a seu mestre e, simultaneamente, o elemento que ameaça toda a fenomenologia transcendental porque problematiza a radicalidade da redução na filosofia de Husserl [3].

No livro De Anima  , Aristóteles   faz a seguinte constatação: “Já que nós percebemos o fato de vermos e ouvirmos, é necessário que se perceba o fato de ver ou com a vista ou com outro sentido: mas então o mesmo sentido dirigirá sua atenção para o ver e para a cor que tem pela frente. E assim dois sentidos dirigiriam sua atenção sobre a mesma coisa ou um sentido prestaria atenção a si mesmo” [4]. O problema da consciência da percepção a que Aristóteles se refere aqui é retomado, de passagem, no livro doze da Metafísica, em que ele discute a possibilidade de o pensamento se ter a si mesmo como objeto; isto parece impossível já que o ser do que pensa e do que é pensado é diferente: “Entretanto, a ciência, a percepção sensível, a opinião   e a inteligência tem manifestamente um objeto sempre diferente delas mesmas e somente se ocupam de si acessoriamente” [5]. Portanto, a reflexão sempre é passageira, jamais é total e a consciência de si (autoconsciência) nunca é plena; pois mergulha de maneira permanente numa camada mais profunda onde a consciência se exerce diretamente.

Os escolásticos designam esta mesma situação com as expressões: actus exercitus e actus signatus. Estes dois conceitos indicam o conhecimento reflexivo (actus signatus) e o conhecimento direto (actus exercitus). É possível perguntar, e perguntar porque se pergunta. O ato de ouvir um som é a consciência direta, e a consciência reflexa está no fato de dar-se conta de que se está ouvindo um som. Portanto, é possível que nem todos os actus exerciti sejam atingidos plenamente pelos actus signati. Diferentes áreas dos atos diretos podem ficar ocultas ou se tornar inacessíveis aos atos reflexos. Nem toda a experiência pode ser recuperada pela reflexão por causa da própria condição finita do homem.

Franz Brentano  , baseando-se nas passagens supracitadas de Aristóteles, distingue entre “percepção interior” e “observação interior”. A percepção interior corresponde aos actus exerciti e a observação interior aos actus signati. Husserl se liga a esta distinção de Brentano, desenvolvendo a doutrina deste de que a consciência interior já sempre é dada na memória pela existência de uma estrutura “horizontal” da consciência. Husserl insiste no horizonte retencional. “O conceito de intencionali-dade da consciência, o conceito de constituição da corrente da consciência, mesmo o conceito do mundo da vida, são elementos que servem para desenvolver esta estrutura de horizonte da consciência” [6].

Entretanto, precisamente a distinção entre os actus exerciti e os acfus signati levanta um problema que se resumiria para Husserl no problema do mundo da vida. Se nem todo o actus exercitus pode transformar-se em actus signatus ou ao menos só transformar-se parcialmente; se o esforço de reflexão não chega a esgotar constantemente o conhecimento direto e as vivências concretas; se o esforço de reflexão chega mesmo a ocultar dimensões dos actus exerciti; então, impõe-se a seguinte questão: pode a redução transcendental ao ego   atingir a exigida radicalidade? É possível que a reflexão e redução transcendental recuperem radicalmente o mundo da vida na consciência transcendental?

6.1 Gadamer   assim, comenta, este problema crucial que se punha para o velho Husserl: “A questão decisiva na realização do programa fenomenológico, traçado nas Ideias em 1913, seria a seguinte: seria a planejada redução deveras radical? Devia-se perguntar se na construção da produção de sentido na consciência, a partir do eu originário transcendental, realmente tudo o que tinha valor alcançava sua legitimação transcendental ou se neste processo de legitimação se escondiam ainda crenças encobertas sem que pudessem ser observadas, tornando, assim, suspeitas tanto a justificação como a evidência de tal processo. Transcorreu pouco tempo para que Husserl reconhecesse que a suspensão geral da afirmação ontológica da realidade que ele exigira para se opor à consciência posicionai da ciência alcançara algo definitivo e constante no ego transcendental. Este último era, no entanto, algo vazio com o qual não se sabia bem o que fazer. Husserl reconheceu de maneira particular que ao menos dois pressupostos desapercebidos tinham ficado retidos neste ponto de partida radical: De um lado fora retido o pressuposto de que o eu transcendental encerrava em si o “todos nós” da comunidade humana e de que a auto-interpretação transcendental da fenomenologia de modo algum levantara expressamente o problema de como era propriamente constituído pelo eu transcendental, além do mundo pessoal do eu, o ser do “tu” e do “nós” (o problema da intersubjetividade). De outro lado, Husserl reconheceu que a suspensão universal da tese da realidade não bastava, na medida em que a suspensão da afirmação sempre atinge apenas o objeto expresso do que a intencionalidade tem em vista e não o que está implícito no que a intencionalidade visa e as implicações anônimas que são constantemente dadas em todas aquelas intenções. Estas implicações tornam-se, entretanto, comprometedoras para a radicalidade da redução transcendental, na medida em que a crítica ao objetivismo da ciência pressupõe o valor do mundo da vida sem legitimação e prova constitutiva (IV, 136). Assim, Husserl chegou a elaborar uma teoria dos horizontes, os quais no fim se cerram no horizonte universal do mundo, que compreende toda a nossa vida intencional” [7]. Tendo em vista tudo isto, Husserl procura mostrar na obra, A Crise das Ciências Europeias, que todo o mundo da vida, da crença do mundo que sustenta o chão da experiência natural da vida do pensamento humano deve ser suspenso e encontrar sua constituição no eu transcendental. Isto era absolutamente necessário para se salvar a radicalidade da redução transcendental. Por isso Husserl procura assumir todos os actus exerciti do mundo da vida na consciência transcendental.

Aqui pode ser surpreendido o núcleo em que reside um elemento decisivo de ruptura entre Husserl e Heidegger que se junta a todos aqueles que já analisamos. Ser e Tempo se ocupa diretamente da analítica do mundo da vida na medida em que o homem é um ser-no-mundo como facticidade. À primeira vista a analítica transcendental que Heidegger realiza da quotidianeidade poderia dar realmente a impressão de que a obra do discípulo de Husserl se inseria na análise e nas intenções da fenomenologia husserliana. Que isto não passasse de aparência devia-se às experiências e intuições profundas que o próprio Heidegger já trazia consigo de suas análises da história da filosofia, enriquecidas por seu método fenomenológico. Sua preocupação essencialmente ontológica visava a analítica do ser-aí como o ponto de partida privilegiado para recolocar a questão do ser contra toda a tradição transcendentalista e subjetivista da metafísica ocidental. Por isso o filósofo rompia, em Ser e Tempo, o círculo de ferro da reflexão e procurava mostrar a importância de caráter decisivo da análise do ser-no-mundo no qual mergulha toda a reflexão como em seu chão nunca inteiramente retomado ou recuperável pela consciência reflexa. O mundo da vida não se apresenta, portanto, para Heidegger como um desafio para a radicalidade reflexiva, mas antes a reflexão recebe dele seu objeto e movimento. O mundo da facticidade do ser-aí era para Heidegger a área em que se impunha o problema do ser caso se quisesse fugir do objetivísmo ingênuo.

Gadamer fala desta interpretação heideggeriana   como de um novo horizonte que se descerrava em meio ao racionalismo da reflexão transcendental: “A possibilidade de anular (fazer retroceder) esta passagem da intenção imediata e direta para a intenção reflexiva, parecia, naquela época, um caminho que se abria para a liberdade: Era a promessa da libertação do inevitável círculo da reflexão, a reconquista do poder evocador do pensamento conceituai e da linguagem filosófica, a qual era capaz de garantir à linguagem do pensamento uma posição digna ao lado da linguagem da poesia” [8].

Heidegger descobriu nos actus exerciti uma camada mais profunda da experiência humana do mundo, situada além da atitude objetivante da consciência, que se deveria constituir em campo específico da filosofia. “Que com isto, entretanto, se impunha uma tarefa ontológica de pensar o “ser” que não era o ser “objeto”, isto a consciência filosófica em geral notou através da crítica de Heidegger ao conceito de pura subsistência (Vorhandenheit  ) em Ser e Tempo” [9].

6.2 É em Ser e Tempo, onde se movimenta ainda numa analítica transcendental, que Heidegger esboça uma fenomenologia, que procura pensar esta camada de realidade do ser-no-mundo, do mundo da vida, das vivências cotidianas, que se ocultam nos actus exerciti. Heidegger não sonha em reduzir esta realidade a um horizonte transcendental do puro eu, conforme o modelo husserliano. Pelo contrário, para Heidegger o papel da fenomenologia consiste em se inserir nesta realidade que escapa à total auto-transparência e nela manifestar aquilo que ali se oculta à reflexão, assim como a partir de si se manifesta, isto é, ocultando-se para a radicalidade reflexiva. Heidegger queria atingir desta maneira o ser do ente, muito além das dissimulações da vida em seu acontecer concreto, assumindo o ser como velamento e desvelamento reciprocamente imbricados. Para Heidegger a fenomenologia de modo algum pode corresponder às exigências da radicalidade husserliana de autofundar a própria facticidade na total transparência. O fato de o ser-aí ser facticidade faz com que ele seja irredutível a uma total transparência reflexiva. Sua facticidade é existência. “A “essência” do ser-aí é sua existência” [10], é uma afirmação que Heidegger insere no início de Ser e Tempo e que aponta para a irredutibilidade do ser-aí, porque este é existência e como tal deveria ser posto entre parênteses para se proceder à sua redução eidética. Não sendo porém ele essência, a redução é impossível; e uma vez posto entre parênteses não mais se recuperaria para a reflexão, pois sem existência o ser-aí não é mais.

A análise do ser-aí enquanto ser-no-mundo deveria mostrar como o ser-aí jamais se esgota, em sua determinação ontológica, na pura objetivação. O ser-aí já vem sempre envolto na autenticidade e inautenticidade, na verdade e na não-verdade, no velamento que acompanha todo o desvelamento. Desta maneira a fenomenologia não será mais o instrumento de redução de tudo à subjetividade, nem um caminho para transformar tudo em “objeto”. A fenomenologia heideggeriana   vigiará o âmbito do velamento e desvelamento em que residem todas as essências.

Este âmbito è o lugar em que se dá a abertura do ser no ser-aí. O Filósofo procura precaver-se principalmente contra a tentação da constituição do eu transcendental porque, além de julgar insustentável o acesso a este eu pela via da redução ou por outro caminho, ele entreve no recurso ao eu transcendental uma repetição do modelo da metafísica ocidental: a noesis   noeseos, o pensamento de pensamento, o Deus na sua absoluta autopossessão, modelo inacessível da interrogação filosófica. A fenomenologia transcendental, na medida em que era conduzida pelo modelo de presença constante, visava precisamente eliminar toda dimensão fáctica, assumindo todo o mundo da vida no eu transcendental. Além de Heidegger não admitir a possibilidade da redução ele criticava nela a ausência de uma preocupação ontológica tanto em torno do ser posto entre parênteses na redução, como do ser que constitui o ser-aí. A sua fenomenologia devia velar a manifestação do ser no âmbito da diferença ontológica, na ambiguidade de velamento e desvelamento, em que homem e ser se comunicam.


Ver online : Ernildo Stein


STEIN, Ernildo. A questão do método na filosofia: um estudo do modelo heideggeriano. Porto Alegre, Movimento, 1983


[1Husserliana IV, p. 372 (Beilage XII)

[2Husserliana VI

[3Gadamer, H-G. - Phaenomenologische Bewegung, passim

[4Peri Psyches 425 b, 12-15

[5Metafísica 1047b, 35-37

[6Gadamer, H-G. - Phaenomenologische Bewegung, p. 23

[7Gadamer, H-G. - Phaenomenologische Bewegung, p. 21-22

[8Gadamer, H-G. - Heidegger und die marburber Theologie, em: Zeit und Geschichte, Dankesgabe an R. Bultmann zum 80. Geburtstag, p. 483

[9Gadamer, H-G. - Phaenomenologische Bewegung, p. 24

[10Sein und Zeit, p. 142