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Dastur (2015:81-86) – Binswanger e Heidegger

quarta-feira 7 de fevereiro de 2024, por Cardoso de Castro

Binswanger  , a despeito de algumas afirmações imprudentes, não desconhece a diferença entre o nível ontológico das análises heideggerianas e o nível propriamente antropológico onde ele situa as suas. Sua oposição fundamental a Heidegger advém, como ele mesmo explica, do fato de que ele fala “não do Dasein   enquanto a cada vez meu, teu ou seu, mas do Dasein humano em geral, ou do Dasein como “humanidade”. Eis aí o núcleo da questão. É exatamente isso que Binswanger considera como o ponto de partida da análise existencial, a saber, a Jemeinigkeit   do Dasein à qual, ele confessa, ainda em 1962, não ter chegado a se adaptar. Vem daí as reiteradas críticas a Heidegger por descuidar da nostridade e por, a despeito de sua insistência em fazer do Mitsein  , do ser com os outros, o que constitui originalmente o ser-no-mundo do Dasein, continuar a acentuar, do ponto de vista existencial, o ser si mesmo, como é o caso em Kierkegaard  , de quem ele considera que Heidegger apenas secularizou o ideal   religioso da existência. Para Binswanger, ao contrário, “é apenas da nostridade que ‘nasce’ a ipseidade”, a Wirkeit, a nostridade, sendo “anterior” tanto ao eu quanto ao teu. [81]

Vem daí o fato de “a questão cardinal” colocada por Binswanger ser a de saber se o amor deve ser compreendido a partir da temporalidade no sentido heideggeriano e, então, a partir da estrutura do cuidado ou se, ao contrário, ele não se temporaliza de modo nenhum. Se o amor não pode ser compreendido a partir do cuidado, o que para Binswanger deriva de seu próprio ponto de partida que é a nostridade, isso não quer dizer que ele esteja de algum modo “para além do tempo”, mas que sua temporalidade “deve ser interpretada não a partir da finitude do Dasein, mas a partir da infinitude”, a infinitude e a eternidade do amor, das quais encontramos testemunho nos poetas, e das quais a “pressuposição” é, segundo Binswanger, fenomenologicamente atestável e imediatamente comprovável no encontro amoroso. A “divergência” que, assim, o separa de Heidegger concerne ao estatuto do amor, que, de uma parte, transcende o cuidado, e de outra, se revela como um a priori  , como o que torna possível a Erschlossenheit   mesma, a abertura do Dasein ao ser. O que Binswanger afirma sem ambiguidade é “o primado fenomenológico do amor sobre o cuidado”, sem, contudo, renunciar a pensar ontologicamente o amor, sua transcendência não remetendo a nenhum “além” no sentido metafísico ou religioso. No entanto, o primado do amor só se pode compreender, paradoxalmente, sobre o fundamento da análise heideggeriana   do Dasein como cuidado, nunca estando o amor na vida cotidiana senão “em união” com o cuidado, pois “o Dasein só pode ser enquanto infinito na medida em que ele é finito”. [82]

Vemos, portanto, que não se trata, com as Grundformen, nem de uma réplica à análise existencial, nem de uma simples extensão dela, mas sim de sua subversão interna a partir da noção fundamental de nostridade, com a qual Binswanger acha que faz quebrar o quadro “solipsista” demais da concepção heideggeriana   da existência. A oposição maior está consequentemente entre a Jemeinigkeit, o sempre a cada vez meu heideggeriano, e a Wirheit  , a nostridade binswangeriana, que deve muito ao Je et tu de Buber, distinguindo-se dele, porém, pelo fato de que ela resulta imediatamente do encontro amoroso não precedido por nenhuma busca por um tu. Tal nostridade não remete a um nós plural, mas a um nós dual, no sentido linguístico do termo, e ela não resulta da dualidade do eu e do tu, mas, ao contrário, a precede, na medida em que um não existe sem o outro, de sorte que ela consiste numa verdadeira communio. Tal nostridade constitui para Binswanger uma unidade originária que não pode de modo nenhum ser derivada do si mesmo, mas que, ao contrário, torna possível todo si mesmo e toda ipseidade. É essa unidade do eu e do tu no amor que Binswanger chama de “coração” (Herz), no que essa palavra significa a superabundância (Überschwang) mesma do amor, o que nele transcende (überschwingt) o mundo do cuidado.

Há, de fato, para Binswanger uma “realidade do amor” sobre a qual ele afirma sem rodeios que constitui “o mais real de ‘nosso’ Dasein”, rompendo, assim, tanto com Feuerbach, de quem ele se sente, por outros motivos, [83] muito próximo, quanto com Freud  , que vê todos os dois, o eu e o tu, no amor como estando numa ilusão. Não se trata certamente de ver na libido a origem do fenômeno amoroso, mesmo que se possa encontrar no amor sexual a sua realização mais elevada — e há nesse ponto uma “diferença imensa” entre o ponto de vista genético da psicanálise e o ponto de vista antropológico de Binswanger que “impede comparar sua concepção com a da psicanálise”.

O verdadeiro pomo da discórdia entre Binswanger e Heidegger concerne, então, à noção de Jemeinigkeit, o ser a cada vez meu, com relação à qual é preciso lembrar que constitui uma estrutura distributiva que Heidegger nomeava inicialmente em 1924 como Jeweiligkeit, o ser cada vez transitório do Dasein. Pela noção de Jemeinigkeit, de minhidade (mienneté), não é a “essência” do Dasein que é definida, mas a sua maneira eminentemente temporal   de ser. Abandonar o pensamento da essência implica que se perceba ao mesmo tempo a finitude do tempo e a estrutura plural da existência. Ser-no-mundo e ser-com-os-outros são existenciais cooriginários, de modo que não se pode ter um sem o outro, o que Binswanger não negligencia, mas que ele não pode aceitar, pois ele vê aí um “salto” ilegítimo: é sobre a tese segundo a qual o Dasein é sempre [84] Mitdasein, coexistente, que ele declara que ela “arrasta (…) atrás de si ainda hoje um enredamento de questões não resolvidas”.

A “minhidade” da existência não é, então, de modo nenhum incompatível com o ser-com-os-outros, pois o isolamento extremo, o do ser-para-a-morte, não é a negação, mas a pressuposição do ser com os outros em geral. Isso que cada um tem em comum com os outros é precisamente sua Jeweiligkeit, de modo que a diferença insuperável entre o eu e o outro é o que me torna igual a ele, e o que me separa dele é precisamente o que eu posso compartilhar com ele. O erro consiste, portanto, em pensar que Heidegger parte do homem “isolado” para lhe atribuir apenas depois a relação com o outro. É a razão pela qual ele insiste sobre o sentido existencial-ontológico do Mitsein que é “uma determinação do Dasein a cada vez própria”. O ser do Dasein é o ser-com-os-outros e não a egoidade individual do sujeito isolado, de modo que cada vez que Heidegger usa o termo Dasein, o ser-com-os-outros está coimplicado. Sendo assim, não se pode compreender nada de Ser e tempo   se se vê no Dasein um simples nome diferente do “sujeito” ou do “eu” e se não se leva em consideração o fato de que “o Dasein é essencialmente nele mesmo ser-com-os-outros.

Para Binswanger, Heidegger não chegou a dar lugar ao amor em sua concepção da relação com o outro, porque ele o compreende, sobre a base do cuidado, como preocupação (Fürsorge  ), termo que pode ser traduzido em francês, como o faz o tradutor de Être et temps (Ser e tempo), F. Vezin  , por “souci mutuei” (cuidado mútuo). Binswanger, diferentemente de Boss, não viu o interesse   que pode trazer para um psiquiatra a distinção heideggeriana entre duas formas “positivas” de preocupação, por oposição aos modos cotidianos de nossa relação com o outro que são de uma preocupação deficiente ou indiferente que não visa realmente ao outro enquanto tal, mas [85] o identifica mais ou menos com o conjunto de utensílios de que se compõe o Umwelt   (mundo circundante) cotidiano. A primeira dessas formas é a da preocupação “substitutiva”, não isenta de certa violência, que consiste em ajudar o outro, tomando a responsabilidade de seu cuidado e o reduzindo a uma posição de dependência. A segunda é a de uma preocupação, ao contrário, “antecipadora” que consiste em ajudar o outro em vista de lhe permitir tomar ele mesmo responsabilidade de sua própria existência. Binswanger considera essa segunda forma de preocupação como oriunda ainda do mundo do cuidado, já Boss vê ai, ao contrário, a descrição da relação terapêutica ideal, que Heidegger, além disso, aproxima nos Zollikoner Seminare da maiêutica socrática. Desse modo, é nesse deixar-ser o outro como cuidado autêntico que Heidegger vê a forma mais elevada da relação com o outro. Eis porque, a Binswanger, que o critica por ter esquecido o amor, ele responde nos Zollikoner Seminare que é sobre o cuidado, compreendido no sentido ontológico de abertura fundamental do existente ao futuro, que se funda o amor assim como o ódio. Ele acrescenta ainda: “pode-se mesmo esperar que a determinação essencial do amor, que busca um fio condutor na determinação do Dasein possível pela ontologia fundamental, seja mais essencialmente profunda e de uma estatura bem maior que essa (a de Binswanger) caracterização do amor que vê nele algo mais elevado que o cuidado.


Ver online : Françoise Dastur


CABESTAN, Philippe; DASTUR, Françoise. Daseinsanálise: fenomenologia e psicanálise. Rio de Janeiro: Via Verita, 2015