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Tédio e Tempo

Casanova (Tédio:21-24) – Ganze des Seienden e Seienden im Ganzen

2. Descerramento afetivo do mundo: as tonalidades afetivas fundamentais.

terça-feira 17 de fevereiro de 2015, por Cardoso de Castro

Para que pudéssemos experimentar algo assim como o todo do ente [Ganze   des Seienden  ], seria necessário que estivéssemos fora de tal todo e que pudéssemos vê-lo enquanto um todo de fora. Em contraposição a essa totalidade estruturada pela soma ou pela extensão máximamente extensa dos entes por si subsistentes, então, Heidegger nos fala de um descerramento do ente na totalidade [Seienden im Ganzen].

Por todo do ente [Ganze   des Seienden  ], o que está em questão é uma noção de totalidade [Ganzen], que se constitui justamente por meio do somatório máximamente extenso dos entes por si subsistentes, algo semelhante à ideia kantiana de mundo como a totalidade dos objetos da experiência possível ou com o conceito husserliano de mundo como o posicionamento natural de todos os objetos. Tal noção de totalidade envolve claramente uma impossibilidade, uma vez que o máximo que conseguimos alcançar em meio à totalidade é uma generalização que jamais permite ver de fora o todo daí emergente. Não há para nós jamais a possibilidade de alcançar algo assim como o ponto de vista do olho de Deus, para utilizarmos uma expressão exemplar de Gilbert Ryle [1]. Para que pudéssemos experimentar algo assim como o todo do ente, seria necessário que estivéssemos fora de tal todo e que pudéssemos vê-lo enquanto um todo de fora. Em contraposição a essa totalidade estruturada pela soma ou pela extensão máximamente extensa dos entes por si subsistentes, então, Heidegger nos fala de um descerramento [21] do ente na totalidade [Seienden im Ganzen]. Esse descerramento envolve por princípio uma noção fenomenológica de totalidade, que se aproxima da descrição da totalidade como horizonte de manifestabilidade de tudo que é e pode ser. Temos aqui uma determinação que carece de explicitação mais detida. O mundo enquanto abertura do ente na totalidade funciona, em verdade, como horizonte a partir do qual tudo que se mostra pode, pela primeira vez, mostrar-se enquanto tal. Exatamente como esse horizonte, ele se descerra na totalidade, uma vez que uma restrição de seu campo de abertura reintroduziria a noção de um campo empírico de abertura, que seria constituído por características completamente diversas em sua constituição e que se encontraria ao lado, para além do limite do mundo enquanto mundo. A própria compreensão de mundo como horizonte de manifestabilidade, contudo, inviabiliza falar de tal restrição, da presença por assim dizer de dois ou mais campos justapostos: um campo fenomenológico e um ou mais campos empíricos. O mundo é como uma mónada, sem portas e janelas, pelas quais algo pudesse entrar e sair. Tudo que é só aparece como sendo a partir do mundo. Qualquer novo fenômeno só é possível enquanto modulação de tal campo de manifestação. Quanto mais se estende o conteúdo do que se mostra no interior do mundo, tanto mais o mundo se projeta para além do que se alcançou. E por isso que Heidegger vai chamar essa totalidade de “transcendência do ser-aí humano”, por exemplo, no tópico c do parágrafo 69 de Ser e tempo   e em outros lugares [2]. Bem, mas enquanto a primeira noção de totalidade envolve, como vimos, uma impossibilidade, a segunda, é o que se encontra formulado na passagem da preleção inaugural O que é metafísica?, “acontece constantemente em nosso scr-aí”. Por qué?

A noção de “todo do ente” encerra em si uma impossibilidade intransponível pelas razões explicitadas acima. Um ente finito, um ente que se encontra dentro do todo, jamais pode sair da totalidade e considerá-la de fora enquanto totalidade. No interior de tal totalidade, o máximo que podemos atingir é urna generalização extrema, que nunca tem como dar conta, contudo, do todo. Foi por isso que Kant   detectou pela primeira vez uma espécie de poder transgressor da razão enquanto faculdade das idéias e foi isso também que tomou possível para ele pensar o tema importante das antinomias da razão em termos da economia de sua Crítica da razão pura. Ora, mas se nós jamais podemos apreender, por um lado, teoricamente o todo do ente, as tonalidades afetivas caracterizam-se justamente pelo fato de abrirem originariamente o ente na totalidade. Para que se possa acompanhar, no entanto, em que medida elas podem desempenhar esse papel de descerradoras do ente na totalidade, é fundamental ter em vista o quanto a compreensão heideggeriana   das tonalidades afetivas emerge de uma radical transformação da concepção clássica dos afetos. Para a tradição, os afetos apresentavam-se de alguma forma como uma terceira categoria de entidades subjetivas; e uma terceira categoria pensada em termos hierárquicos. Em primeiro lugar, tinham-se as representações, para as quais era possível pensar um valor de verdade, uma vez que representações sempre podiam mostrar-se como adequadas ou inadequadas. Em segundo lugar, aparecia a vontade, que também podia ser pensada como tendo certa participação na verdade, na medida em que a vontade podia funcionar como princípio causal de [23] uma ação justa ou injusta. Por fim, então, surgiam os afetos, que se supunha como não tendo nenhuma outra função senão atuar como um adorno e um colorido para as representações e para os atos de vontade. Tal como se encontra subjacente à linha argumentativa de uma longa tradição, se estou triste ou alegre, a soma dos ângulos internos de um triângulo continua sendo cento e oitenta graus, as verdades matemáticas em geral não se alteram, os princípios que regulam a natureza não se transformam, os princípios lógicos se mantêm tal como eram etc. Ao atribuir às tonalidades afetivas o papel de descerramento da totalidade, portanto, Heidegger está colocando radicalmente em questão essa tradição. E isso por razões que veremos em seguida. Por agora, porém, o importante é justamente acompanhar em que medida é possível dizer que as tonalidades descerram o ente na totalidade.


Ver online : Marco Casanova


[1Ryle, Gilbert. Teoria da Significação. Tradução de Osvvaldo Porchat de Assis Pereira da Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1975

[2Cf. entre outros Heidegger, Martin. Ser e tempo, §69, tópico c; e “Da essência do fundamento”, in: Marcas do caminho, oc 9, 2004.