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Casanova (Tédio:15-16) – Unbestimmtheit

segunda-feira 8 de novembro de 2021, por Cardoso de Castro

[…] os existenciais determinam justamente a indeterminabilidade última do ser-aí humano: eles não descrevem senão o modo de ser de um ente que não tem nenhuma determinação para além de suas possibilidades de ser no tempo finito de ser essas possibilidades.

É preciso explicitar aqui um pouco mais o que compreendo por “indeterminação ontológica”. Ao ouvir tal expressão, alguém poderia retrucar que, na medida em que o ser-aí humano é determinado originariamente por seu caráter de jogado, ele já sempre teria deixado para trás tal indeterminação e assumido determinações específicas em meio à realização de suas possibilidades fáticas de ser. Ao mesmo tempo, como seria possível afirmar a indeterminação ontológica do ser-aí humano, uma vez que todo o exercício de Ser e tempo   e mesmo das preleções que gravitam em torno da obra capital do pensamento heideggeriano na década de 1920, antes e depois de 1927, caracteriza-se justamente por explicitar os existenciais que determinam o modo de ser do ente que nós mesmos somos, o ente que é sempre a cada vez meu?!? Em primeiro lugar, quanto à menção à facticidade, parece-me imprescindível ter em vista que as possibilidades fáticas de ser do ser-aí humano jamais suprimem o caráter de poder-ser que é o dele. Heidegger chega mesmo a explicitar esse fato diretamente por meio da noção de diferença ontológica em sua preleção Prolegômenos a uma história do conceito de tempo. Diferença ontológica é um termo para designar então o fato de que o ser-aí jamais se torna os seus modos de ser, como se esses modos de ser pudessem ser pensados na chave da ontologia da subsistência em si, mas sempre retém o modo do ser possível em todas as suas possibilidades de ser. É isso, por outro lado, que viabiliza a conexão entre ser e tempo (Cf. Prolegômenos a uma história do conceito de tempo, GA20  , pp. 148-92). Em segundo lugar, a objeção, segundo a qual a indeterminação ontológica do ser-aí humano seria incompatível com a sua determinação enquanto existente, ou seja, enquanto totalidade do todo estrutural dos existenciais, também me parece desconsiderar que os existenciais determinam justamente a indeterminabilidade última do ser-aí humano: eles não descrevem senão o modo de ser de um ente que não tem nenhuma determinação para além de suas possibilidades de ser no tempo finito de ser essas possibilidades. Assim, chamar os existenciais de determinações do ser do ser-aí me parece algo que atenua justamente o significado último da noção de poder-ser: a impossibilidade de transformar um modo de ser no modo de ser do ser-aí. Por fim, não é demais lembrar que o próprio Heidegger acentua essa indeterminação, utilizando, inclusive, uma variante interessante em alemão, Unbestimmtheit  , que poderíamos traduzir antes por “indeterminidade”, em uma passagem paradigmática que cito aqui: “A decisão transparente para si mesma compreende que a indeterminidade do poder-ser só é a cada vez determinada no estar decidido para a respectiva situação. Ela sabe da indeterminidade, que impera sobre um ente que existe. Esse saber, porém, precisa emergir ele mesmo, caso ele queira corresponder à decisão propriamente dita, de um descerramento próprio. A indeterminidade do poder-ser próprio, que, contudo, já sempre se tornou a cada vez certo no estar decidido, só se manifesta. porém, completamente no ser para a morte. A antecipação traz o ser-aí para diante de uma possibilidade, que permanece constantemente certa e. no entanto, indeterminada a todo instante quando a possibilidade se torna uma impossibilidade. Ela toma manifesto que esse ente é jogado na indeterminidade de sua ‘situação limite’. A indeterminidade da morte descerra-se originariamente na angústia. Essa angústia originária, porém, impele a decisão a se encher de si. Ela elimina todo encobrimento do ser entregue do ser-aí a si mesmo. O nada, para diante do qual a angústia traz, desentranha a nulidade que determina o ser-aí em seu fundamento, o fato de que ele mesmo é, enquanto jogado, na morte” (ST, §62, p. 308).


Ver online : Marco Casanova


[CASANOVA, Marco. Tédio e tempo — sobre uma tonalidade afetiva fundamental fática de nosso filosofar atual. Rio de Janeiro: Via Verita, 2021, Nota p. 15-16]