Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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Carneiro Leão (2017:45-47) – jogo da vida humana

sábado 2 de dezembro de 2023

A palavra polis   tem a ver com o verbo pelomai, que fala deste processo de criação dos movimentos de ser e não ser e de vir a ser, tanto no aparecer como no desaparecer, de tudo o que opera, surge e cresce. Por isto, a política é o lugar de criação da comunidade. Nem sempre é, mas devia ser. É a lição que nos passa o 1o versículo do famoso canto de Antigona: “Muitas são as coisas extraordinárias, mas nada se ergue e se impõe com mais vigor extraordinário do que o homem”. Assim Polis, política, cidade diz o polo em que a realidade faz girar o real em suas realizações, diz a instância em que a realidade instancia e distancia, diz o lugar onde a realidade centra, concentra e descentra, todas as realizações dos indivíduos e dos grupos, as realizações de tudo o que é e está sendo, de tudo o que não é e não está sendo. É o sentido desta experiência primordial que a Mnemosyne tornou no jogo do amor, se tornou a mãe de todas as forças criadoras da condição humana. É o que os gregos chamavam de musas (mousai). Mas que jogo é este de gerar potências de realização? É o jogo do tempo em sendo, criando condições de realização. Assim, o fragmento 32 de Heráclito nos agita o esquecimento inaugural do [45] cuidado com as seguintes palavras de criação: “Tempo criador, é uma criança, jogando dados.” Toda a criação é o reino da criança. A palavra criança não diz aqui o menino, garoto, mas a força criadora. E que com dados e com criança, Mnemosyna nos concede o jogo e o modo de ser, nos presenteia com o modo de ser da diversão. O que é o jogo? Jogo não é necessidade, é diversão. Diversão não é dever, é escolha. O que será que existe no universo, numa criatura como nós, que gosta tanto de jogar, que adora divertir-se? A pergunta que mobiliza e encanta todo o desafio histórico traz como resposta a memória criadora das musas. É porque divertir-se é separar-se do que se deve ser, porque diversão troca a necessidade pela liberdade. Jogar e evadir-se das imposições de um mundo de regras e deveres que nos sufoca, que não deixa espaço para diferença entre afinidade nenhuma e encaminhar-se para o mundo do inesperado, da surpresa, da inventividade da criação. É isto que constitui o valor e a razão de ser do jogo. De que o homem se diverte no jogo? Diverte-se das restrições e das constrições. Com que o homem se diverte no jogo? Se diverte com a liberdade. Com o esquecimento positivo a diversão perde o caráter passivo e ao mesmo tempo irresponsável, frívolo, e se converte no mais elevado patamar de ação e de atividade, ou seja, a inventividade de se criar a si mesmo, a invenção de ser o que se é. Assim, o mais ativo que o homem pode ser, não é no trabalho, quando o homem faz algo diferente de si mesmo, e sim no empenho em que se dedica a criar o seu próprio modo de ser e a inventar o perfil de sua fisionomia.

Os demais seres vivos, para nossa experiência, vivem a sua vida e nada mais. Só o homem vive com a angústia do nada. Sobrevive à vida em sua vida. Assim, o homem é o único ser vivo que para viver, não basta viver, tem de empenhar-se em criar a sua vida. É convidado, por isto, constantemente, a assumir a responsabilidade de cuidar de si mesmo, de dedicar-se a viver. É este o sentido ontológico do jogo, como consignou um dos maiores filhos das musas, Píndaro, o poeta das perdas e das vitórias do viver. Na 5a ode pítica do seu Epinikoi Olympionikais, celebrando a criação inaugural da diversão e do esporte, do jogo da vida humana, o jogo jogado pela angústia criativa de Mnemosyna, ele escreveu: “Seres de um dia (efêmeros)” – O competidor tem aquele instante da disputa, a vitória dele é aquele instante – “que é ser alguém? Que é não ser ninguém? O homem: sonho de uma angústia’’. A palavra que ele usa para dizer angústia diz [46] “sombra”. A sombra como sendo algo que não tem consistência, não tem permanência, alguma coisa fugaz, passageira. Esta angústia, este sonho de uma sombra é ser homem, é ser humano, é ter este sonho.


Ver online : Emmanuel Carneiro Leão