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Aristóteles - Ética a Nicômaco

Caeiro (2012:10-11) – ação

Apresentação

quarta-feira 20 de fevereiro de 2019, por Cardoso de Castro

Extrato da Apresentação de António de Castro   Caeiro   de sua tradução da Ética a Nicômaco, Lisboa, Quetzal, 2012, p. 10-12.

As acções têm, assim, o seu princípio de ser no Humano enquanto tal. Sem o elemento Humano não há acção. É o próprio Humano que é causa eficiente enquanto motivação da acção. E é também o Humano a causa final da acção, o terminus ad quem de todo e qualquer encaminhamento prático. O modelo aristotélico do pensamento da acção é o da produção. Sem dúvida que agir (agere) é diferente de produzir (facere). Pode haver uma perícia da produção, mas já não uma perícia da acção.

O sentido da palavra «perícia» é equívoco. «Perícia» pode ser um ofício ou uma profissão. Mas tem também o sentido de produção artística, arte. Em ambos os casos a língua grega faz pensar, de facto, numa fabricação, numa produção. O operador fundamental da perícia é o domínio de uma competência (artístico-técnica), a qual pode ser adquirida por aprendizagem. Para perceber de uma determinada perícia é necessário exercê-la, pô-la em prática, por assim dizer. Saber é fazer.

Ora é precisamente aqui que reside a diferença entre o agir e o produzir. O agir não admite perícia. Assim, se considerarmos, a respeito da produção, distintamente cada uma das partes envolvidas no seu processo, isto é, o produzir, o produtor (o perito ou o técnico) e o produto enquanto resultado da sua aplicação, percebemos a natureza da relação entre cada uma delas. Os entes produzidos por perícia (άπό τέχνη  ς) existem, de facto, apenas sob a dependência e acção directa do Humano. Ou seja, sem perícia ou perito não existem apetrechos nem obras de arte. Contudo, os produtos de uma perícia são-lhe extrínsecos quando acabados.

Na acção não é assim. Quer dizer, não há aqui distinção entre acto, agente ou o resultado da acção. Agir enquanto tal alberga a priori   tanto o seu princípio como o seu próprio fim. Por outro lado, agir e produzir têm em comum a natureza do horizonte em que acontecem. Trata-se de um horizonte que admite alteração. Depende do Humano enquanto o seu princípio e fundamento para existir. Mas é o agir, mais do que o produzir, que exprime o Humano enquanto Humano. O Humano enquanto prático é princípio da acção. É ele também que é tido em vista como o seu fim. É no agir que o Humano se pode cumprir na sua possibilidade extrema, como ser ético. A acção é a produção humana enquanto tal em sentido estrito.

A análise de Aristóteles permite-nos, assim, uma recondução do horizonte concreto da acção ao seu princípio. Contudo, o princípio da acção não está ao alcance de uma detecção cognitiva e puramente teórica. Na verdade, há uma distância abissal entre conhecer o princípio da acção e exprimi-lo no agir. O saber prático é adquirido apenas quando se converte em acção realizada. Isto é, não importa saber apenas qual é a possibilidade extrema do Humano, mas saber como ser-se essa possibilidade, existir nela, de acordo com ela, em vista dela. A possibilidade extrema do Humano é a de ele se tornar excelente. Saber o que fazer não é suficiente. Tem de se agir.

Mas de todos os problemas postos, o maior resulta de há já muito termos perdido o contacto com o sentido essencial do prático tal como os Gregos o experimentavam espontaneamente. É desse sentido que dependem a possibilidade da sua caracterização, enquadramento e compreensão. Caracterizar o horizonte prático é caracterizar a situação específica em que o Humano se encontra. O sentido original do substantivo «práxis» [1] é dificilmente vertido para português através de termos como «acção» ou «prática». O verbo «práttein» significa passar por, atravessar. Significa também estar sujeito ao acaso, ao feliz tanto quanto ao infeliz. Significa bem assim «levar a cabo», «realizar», «cumprir» [2]. Nesta conformidade, o horizonte prático é o espaço onde tem lugar aquilo por que se passa: as situações em que caímos e as situações que criamos. O Humano existe desprotegido num horizonte que o deixa necessariamente exposto aos reveses da fortuna, aos caprichos do acaso, aos golpes do destino, à adversidade em geral. O mundo em que vivemos, os outros que aí encontramos, nós próprios no que nos dá para fazer, tudo isto forma frentes provocadoras da acção. Mas a acção só acontece quando arranjamos um espaço de manobra para a levar a cabo de livre e espontânea vontade, de forma plenamente consciente.


Ver online : ÉTICA A NICÔMACO


[1Ou com o substantivo πράγμα e o verbo πράττειν. Dificilmente o seu sentido pode ser vertido, respectivamente, por prática ou acção e agir.

[2Assim é em Homero; δις τόσσον άλα πρήσσοντες άπάμεν, Od. 9.491, ocorrência citada na entrada πράσσω no LSJ. Assim também em Píndaro, ainda que com um campo semântico mais alargado e complexo. O sentido de πράσσειν é atravessar. Πράξις é a acção de atravessar, enquanto nomen actionis, isto é, aquilo por que se passou, os momentos bons e maus que se atravessaram, as circunstâncias concretas que de cada vez se constituem. As situações em que se cai ou que se criam. Cf., por exemplo, των δέ πεπραγμένων / έν δίχαι τε χαι παρά δίχαν άποίητον οΰδ’ άν / Χρόνος ό πάντων πατήρ / / δύναιτο -άέμεν έ ργων τέλος, Odes Olímpicas, 2.15 e ss. Aqui τα πεπραγμένα não quer dizer strito sensu o que se fez, as acções que se praticaram, mas o que aconteceu, aquilo por que se passou. Cf. também as seguintes Odes Olímpicas: 37, 4.4, 8.29, 8.73, 10.30, 11.4, 13.106; Odes Píticas, 2.40, 2.73, 3.115, 4.243, 8.52, 9.104, 10.11; Odes Nemeias, 1.26, 3.46, 5.36,?.3; Odes Ístmicas, 5.8, 6.11.