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Introdução ao Pensar

Buzzi (IP:111-115) – Filosofia

4. O Conhecimento FIlosófico

segunda-feira 19 de setembro de 2022

Filosofar é contemplar: é colocar-se com empenho no espaço, no templo da representação ou ação e aí permanecer, no sustine artesanal, à escuta: em tempo oportuno (tempestas) o sentido do tempo fará sua patência no pensar e a ação recobra nessa patência significativa seu vigor de continuidade e sua justiça.

Só é possível conhecer a realidade, isto é, torná-la presente intelectivamente, submergindo nela, deixando que ela fale, que ela se faça presença no âmbito do pensar. Conhecer é o ato do pensamento que percebe a presença do ser, o recolhe no conceito e o comunica na palavra. A filosofia é então subsequente ao ato do pensar. É um saber marcado pela saudade. É um conjunto de conceitos que despertam em nós a saudade do ser, de sua presença, de sua vida acolhida no pensar. A filosofia é consequentemente uma atividade que lembra e comemora perenemente a presença do ser, que em momento favorável se desvelou ao pensar e que permaneceu velado na obra da palavra!

O conhecimento filosófico não é pois um afastamento do ser, uma qualquer representação do ser. Nietzsche   definia o filósofo com essa elementar comparação:

«Um burro pode ele ser trágico? Sucumbir sob o peso, que não consegue suportar, nem se pode lançar fora! o caso do filósofo….» (Goetzen-Daemmerung).

Em alemão «sucumbir» é zugrunde gehen, que significa ir ao fundo, no duplo sentido de aprofundar e ir a pique. A essência da filosofia estaria nesse «ir ao fundo sob o peso». E isso no duplo sentido de ir à raiz da realidade, de aprofundar, de fundamentar e no sentido de ir à breca, destruir-se, fracassar, sucumbir, ir a pique.

A filosofia, em seu impulso primeiro, é um pensar tão carregado do próprio ser, tão próximo à raiz do ser que não há representação que consiga recolher e comunicar seu desvelamento. Mas como o burro que deve carregar seu fardo sem sucumbir, assim o filósofo há de constantemente indagar, questionar o ser, esforçar-se por dilucidá-lo, por representá-lo em ideias logicamente concatenadas: não pode jogar fora esta ou aquela representação do ser. Por outro lado, qualquer representação do ser, por perfeita que seja, não suporta, não carrega o peso do ser. O filósofo então necessariamente sucumbe em sua pretensão de representar o ser. Mas sucumbe sem tragicidade, na simplicidade e na nulidade de um burro. Daí o sabor irônico, alegre-trágico, do dito de Nietzsche que compara o filósofo ao burro.

O pensamento filosófico não é pois simples acumulação de informações, mas uma conexão origina!, indizível, entre uma forma de pensar e o ser. Dizemos indizível porque é difícil justificá-la em raciocinios lógicos. O pensar filosófico envolve o filósofo como a luz envolve as coisas lá onde se esparrama. Quem está na luz não precisa de provar sua presença. A evidência de uma forma de pensar filosófica não vem tanto do pensar lógico-formal  , mas de uma intensa experiência do ser que se manifesta no pensar. Assim o pensar é revelação do ser, mas uma revelação mais indizível que dizível, uma espécie de escuta atenta e secreta do ser, um silêncio do ser, uma saudade do ser, uma comemoração do ser.

A função da filosofia é evocar, através de uma representação conceptual adequada, a evidência ou a transparência da presença do ser. A representação se faz a partir do ser, como o índio que ausculta, ouvido colado à terra, a marcha das hostes inimigas. Nessa auscultação há o sentir do passo do outro, este lhe entra pelo corpo a dentro e, nesse con-sentir, o inimigo é discernido, é descoberto, é revelado. Quando o ouvido se descola da terra, o índio sabe da existência do adversário, mas esse saber é então meramente informativo1, um saber representado, separado de si, projetado diante de si. No ato da auscultação havia uma solidariedade íntima que envolvia o-auscultante-o-ouvido-a-terra-o-auscultado numa só totalidade. É como o raiar do sol: no ato de percebê-lo, de sentir sua presença, já estou nele envolvido antes mesmo de representá-lo.

Portanto, o conhecer-filosófico é um representar o ser em conceitos que permanecem tão solidários ao ser que ao proferi-los evocam, sugerem sua presença. Por isso a filosofia não é representação do ser, mas presentação, uma re-flexão do ser. O filósofo enquanto pensa se expõe ao ser. Quando estiver na total disponibilidade, o ser aparece (faz sua a-parência ou patência) e o pensar o percebe, o contempla e o recolhe. O pensamento é semelhante àquele traço que representa a mãe como uma concha dobrada sobre si mesma. No dobrar-se se encontra com a criança, no silêncio desse encontro sabe o que é maternidade, no ato de auscultar a criança colada, solidária a si, ela sabe o que é ser-mãe. Mas esse saber-o-que-é-ser-mãe é tão envolvente que se torna impossível um momento de separação, de distanciamento, de representação. É um saber solidário ao ser, sem possibilidade de objetivação. É pois um saber onde não-há-objeto. Onde o ser ele mesmo é pura transparência: o ser se vê, se contempla, se conhece no ato mesmo do pensar, sem duplicar-se em sujeito e objeto, em mente e ideias, em figura que contempla sua própria imagem. Embora o pensamento fracasse no empenho de colher o ser na sombra do conceito, embora desfaleça nessa caminhada, o homem se torna filósofo na medida em que se entrega à obra de uma tal experiência. A representação não é o ser, é apenas a sombra onde o pensamento contempla o ser. Como fugir dessa sombra?

«Havia um homem que ficava tão perturbado ao contemplar sua sombra e tão mal-humorado com as suas próprias pegadas que achou melhor livrar-se de ambas. O método encontrado por ele foi o da fuga, tanto de uma, como de outra.
 
Levantou-se e pôs-se a correr. Mas, sempre que colocava o pé no chão, aparecia outro pé, enquanto a sua sombra o acompanhava, sem a menor dificuldade.
 
Atribuiu o seu erro ao fato de que não estava correndo como devia. Então, pôs-se a correr, cada vez mais, sem parar, até que caiu morto por terra.
 
O erro dele foi o de não ter percebido que, se apenas pisasse num lugar sombrio, a sua sombra desapareceria e, se sentasse ficando imóvel, não apareceriam mais as suas pegadas».
 
(A Via de Chuang-Tzu, pp. 197-198).

O episódio, narrado com tanta graça, ilustra o que seja contemplação. Na palavra contemplação está templum (temenos), que era o lugar delimitado, secionado dentro da paisagem céu-e-terra, onde o áugure, o intérprete, observava o pássaro da tempestade. O pássaro da tempestade era o mensageiro, o aceno do destino, o sinal do envio da tempestade.

Tespestade, em português, diz apenas distúrbios atmosféricos. Para os latinos, tempestade (tempestas) significava também o tempo oportuno. Guardamos esse sentido no termo intempestivo que é sinônimo de inoportuno, fora do tempo próprio.

O áugure se colocava no templo para, olhando o pássaro, acolher o instante favorável, que lhe revelaria o sentido do tempo, a direção da história. Ele recolhia, portanto, quando menos esperava, tempestivamente, o sentido do que estava acontecendo, o envio do que ia acontecer, trazido no voo alado do pássaro.

Filosofar é contemplar: é colocar-se com empenho no espaço, no templo da representação ou ação e aí permanecer, no sustine artesanal, à escuta: em tempo oportuno (tempestas) o sentido do tempo fará sua patência no pensar e a ação recobra nessa patência significativa seu vigor de continuidade e sua justiça. O pensamento reconhece assim a verdade do ser na sombra da representação. A representação é o pássaro da tempestade. O filósofo é o áugure que aí contempla o anúncio da verdade. A ação humana é justa e se encaminha ao destino certo quando nela houver momentos de parada, de escuta, de contemplação de sua verdade. A verdade norteará então a vontade nos passos da ação.


Ver online : Arcângelo Buzzi