Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

Página inicial > Léxico Alemão > Boutot (IFH:90-94) – Primeira abordagem da modernidade

Boutot (IFH:90-94) – Primeira abordagem da modernidade

segunda-feira 29 de maio de 2017

Primeira abordagem da modernidade: a essência da ciência moderna e o projeto matemático da natureza

«Um fenômeno essencial dos tempos modernos», diz Heidegger, «é a ciência»(A época das concepções do mundo, Chemins qui ne mènent nulle part, Paris, Gallimard, 1962, p. 69). A ciência não é, certamente, uma invenção moderna, mas entrou numa nova fase da sua história a partir do século XVII. Apresenta-se, por vezes, a diferença entre a ciência moderna e a ciência medieval afirmando que a primeira se apoiaria unicamente em fatos e progrediria a partir deles enquanto a segunda explicaria os fenômenos com a ajuda de noções gerais e abstratas. Esta oposição de uma ciência «positiva», por um lado, e de uma ciência puramente «especulativa», por outro, não é verdadeiramente pertinente, segundo Heidegger, pois «a ciência medieval e a ciência antiga também observavam os fatos, e… a ciência moderna, por seu lado, opera com princípios gerais» (Qu’est-ce qu’une Chose?, Paris, Gallimard, 1971, p. 78). De um modo geral, todas as interpretações que veem no advento da ciência moderna um simples retorno ao concreto, consequência do aperfeiçoamento   dos métodos de investigação da natureza, não alcançam nem a essência da ciência moderna, nem a da ciência antiga nem, por conseguinte, a essência da sua diferença. «Se queremos compreender a essência da ciência moderna», diz Heidegger, «é preciso, em primeiro lugar, libertarmo-nos do hábito que temos de só distinguir a ciência moderna da antiga por uma diferença de grau segundo o ponto de vista do progresso» (A época das concepções do mundo, op. cit., p. 71 ). Porque as proposições metafísicas que elas põem em jogo não são comparáveis, «é insensato dizer que a ciência moderna é mais exata que a da Antiguidade. A ciência grega nunca foi uma ciência exata, e isto pela razão que, na sua essência, ela não podia ser exata e não tinha necessidade de o ser» (Cf. A época das concepções do mundo, op. cit., p. 70). Isto não quer dizer que a ciência grega tenha sido menos verdadeira que a ciência moderna, mas simplesmente, segundo a expressão de J. Beaufret  , que ela era «verdadeira de outro modo» (Cf. Entretiens, Paris, PUF, 1984, p. 63), a verdade não consistia na certeza da representação.

A essência da ciência moderna reside no que Heidegger chama «o projeto matemático da natureza». A ideia de um projeto matemático da natureza aparece pela primeira vez na história do pensamento, em 1623, quando Galileu   afirma que a natureza está escrita em linguagem matemática. Que a natureza esteja escrita em linguagem matemática não é algo evidente. Esta afirmação não é uma proposição científica, mas uma petição de princípio, um verdadeiro golpe metafísico dirigido contra a própria natureza. Consiste em projetar a priori   um plano único ao qual devem conformar-se todos os fenômenos para poderem fazer parte da natureza. Este plano apresenta-se segundo a forma de uma série de axiomas, quer dizer de enunciações antecipativas, fixando à partida o que devem ser as coisas e as suas relações mútuas. Estes axiomas estipulam, por exemplo, que não há senão uma espécie de movimento (o movimento local), que nenhuma direção do espaço é privilegiada em relação a qualquer outra, que todos os momentos do tempo são equivalentes, que a força só se define após o seu efeito, etc. Esta projeção a priori de um plano da natureza não é, enquanto tal, uma matematização dos fenômenos, mas somente o que torna possível, e até necessária, a utilização das matemáticas em física, uma vez que só retém dos fenômenos o que neles é susceptível de ser discernido pela análise matemática, i. e. as suas determinações quantitativas.

Heidegger propõe definir a ciência moderna como «uma teoria do real» (Ciência e meditação, Essais et Conférences, Paris, Gallimard 1958, p. 51). «Teoria» não designa aqui uma contemplação passiva da verdade, mas uma elaboração ativa que dá forma ao real. A ciência moderna «provoca» o real, «para-o e interpela-o para que este se apresente em cada circunstância como o conjunto da causa e do que é causado, ou seja nas consequências previstas a partir das causas dadas» (Ibid., p. 62). Fixa a evolução dos fenômenos em fórmulas matemáticas (leis e teorias) que permitem prever e eventualmente modificar a aparição. O objeto científico, por seu lado, não é o que se mostra, quer dizer o ente tal como ele subsiste no seu ser em si, mas o resultado de uma construção teórica, uma «hipótese» metodológica.

Heidegger não faz aqui um trabalho de epistemologia, mas quer mostrar que na própria ciência, ou melhor no fundo recuado desta, há algo que não é discernido pela ciência mas que à ciência não pode faltar uma vez que esta o pressupõe constantemente, e que não é senão o próprio ser. Com efeito, o objeto da ciência, a Natureza para a Física, não se deixa fechar completamente no quadro traçado por ela. A Física é uma maneira de descrever a Natureza mas não a esgota. «A representação científica», diz Heidegger, «não pode jamais enclausurar o ser da natureza porque a objetividade da natureza mais não é à partida que uma maneira em que a natureza se pôe em evidência. Assim, para a ciência da física, a Natureza permanece o incontornável (das Ununmgangliche) Ibid., p. 70). A Natureza é aquilo a que a Física não pode dar a volta, isto é, cercar na sua plenitude de ser. As leis da Física deixam um resíduo, um incalculável, como Goethe   bem viu no seu conflito infeliz com a Física newtoniana. Este incalculável, que é na realidade o essencial da própria natureza, «rege inteiramente» (Ciência e meditação, Essais et Conférences, Paris, Gallimard, 1958, p. 77) a ciência, uma vez que esta o pressupõe necessariamente, mas continua fundamentalmente inacessível. Heidegger mostra assim simultaneamente os limites do pensamento científico e a necessidade de adotar uma outra atitude, de desenvolver uma outra maneira de pensar, a que ele chama o pensar meditativo, para abordar esse incontornável que se esconde ao olhar do pensamento calculista e que, ainda que não interrogado, é o mais digno de ser interrogado pois ele diz respeito ou interpela o homem no seu próprio ser. Heidegger lembra, em suma, às ciências que elas procedem da filosofia, que vêm dela e dela se escapam, mas que não poderiam, contudo, substituí-la nem encher o vazio deixado pelo estilhaçamento da filosofia numa multiplicidade de disciplinas científicas (psicologia, sociologia, antropologia, lógica, cibernética, etc). Lembra igualmente à filosofia que esta não tem, por seu lado, nada a ganhar em se deixar levar por miragens de cientificidade que só podem afastá-la do que lhe está naturalmente atribuído e que ela tem, desde há muito, deixado impensado. Estas análises não passam sem evocar a «crítica» husserliana da ciência moderna na Crise das Ciências Europeias. Husserl   considerava nesta conferência de 1935 que a ciência moderna se tinha desenvolvido perdendo de vista o fundamento originário sobre o qual se tinha edificado e que esta ocultação era responsável pela crise que atravessava, qualquer que fosse, aliás, a extensão do seu sucesso. Mesmo se não menciona Husserl, Heidegger faz eco, na sua conferência de 1953, Ciência e Meditação, deste tema husserliano, atribuindo-lhe, no entanto, uma significação nova, uma vez que o fundamento esquecido das ciências, o incalculável sobre o qual elas repousam, e que diz respeito ao homem no mais alto grau, não é mais, como em Husserl, o mundo da vida (die Lebenswelt  ), mas mais fundamentalmente a verdade do próprio ser.


Ver online : Alain Boutot