Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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Blanc: Que nós ainda não pensamos…

terça-feira 30 de maio de 2017

«QUE NÓS AINDA NÃO PENSAMOS, É O QUE, NA NOSSA ÉPOCA CRÍTICA, MAIS DA QUE PENSAR»

O possível do pensar está na libertação da sua forma, na saída do enclausuramento que a si próprio se impôs através do modo filosófico de pensar.

Isso não se consegue, porém, pelo reconhecimento do carácter derivado da onto-teo-logia. Porque a referenciação da dimensão originária é efetuada a partir da filosofia e na óptica, que a caracteriza, da verdade, ela só pode ser destacada como condição transcendental  , embora de grau superior, ou seja, como forma da forma. Tal foi a principal lição que colhemos do estudo de Heidegger, a saber: que não se consegue ir mais além da filosofia através de uma problemática de fundamentação, mas tão-somente transportar para outro plano os seus pressupostos.

Será então suficiente, para conseguir a saída da filosofia, questionar o seu modo de pensar? Ou não correremos com isso o perigo de uma libertação ilusória, prolongando, numa interrogação limitada à mera confrontação de modelos, a costumada prática de reconhecimento e de identificação? Tomar consciência do universo mental da filosofia é sem dúvida uma condição importante, mas não suficiente, para despertar o pensamento do seu sono tranquilo e dogmático, para perturbar a sua aplicação metódica enquanto regra e medida.

Ainda neste ponto particular, pensamos que Deleuze   adianta um «caminho» que gostaríamos de poder vir a explorar. Segundo este autor, só o encontro fortuito, mas irremissível, com algo que o force a pensar, pode despertar o pensamento para as suas possibilidades próprias, é capaz de eficazmente nele produzir um acto de pensar: «O que é primeiro no pensamento é o arrombamento, a violência, o inimigo, e nada supõe a filosofia, tudo parte de uma misosofia. Não contemos com o pensamento para estabelecer a necessidade relativa do que ele pensa, mas, pelo contrário, com a contingência de um encontro com o que força a pensar, para levantar e erigir a necessidade absoluta de um acto de pensamento, de uma paixão de pensar. As condições de uma verdadeira crítica e de uma verdadeira criação são as mesmas: destruição da imagem de um pensamento que se propõe a ele mesmo, génese do acto de pensar no próprio pensamento.»

Há assim o que deixa o pensamento tranquilo, entregue ao exercício de recognição, porque transparente à esfera da possibilidade formal  . Mas há também o que violenta o pensamento, o que desconjunta e torna inoperante o seu mecanismo de identificação, porque não é objeto de um reconhecimento, mas de um encontro: o que nos possui e repugna e assim nos maravilha e assusta, o que, acima de tudo, pela sua intensidade, não podemos recusar.

Ele possui, segundo o nosso autor, dois caracteres principais:

1) é algo que só pode ser sentido, que não é partilhado pelas outras faculdades - o próprio ser do sensível;

2) é algo que comove a alma, a torna perplexa, a obriga a pôr um problema.

A libertação do pensar está na atualização de possibilidades atrofiadas pela hegemonia do «logos  ». O veículo para essa libertação é o encontro com o que nos força a pensar. Por ele se opera a transmutação da relação cognitiva com o «real» numa relação essencialmente poiética. A radicalidade desse encontro reside no despojamento a que nos obriga, no abandono a que nos força, de qualquer pressuposição.

«Forçar a pensar» significa então: instaurar essa relação que é o ato de pensar: «(…) pensar não é inato, mas tem de ser engendrado no pensamento. (…) o problema não está em dirigir ou aplicar metodicamente um pensamento preexistente em natureza e direito, mas em fazer nascer o que não existe ainda (não há outra obra, tudo o mais é arbitrário e adorno). Pensar é criar, não há outra criação, mas criar é, em primeiro lugar, engendrar ’pensar’ no pensamento.»

Será que, nesta acepção radical, nós, «na nossa época crítica», já pensamos? A grandeza do pensamento de Heidegger, a sua futuridade, vem dessa simples constatação: «que nós ainda não pensamos.»

(excertos de Mafalda Faria Blanc  , O Fundamento em Heidegger)


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