Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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Arendt (RJ:22-23) – a conduta moral é algo natural?

quarta-feira 9 de dezembro de 2020

Rosaura Einchenberg

A minha primeira formação intelectual ocorreu numa atmosfera em que ninguém prestava muita atenção a questões morais; fomos criados com a pressuposição; Das Moralische   versteht sich von selbst  , a conduta moral é algo natural. Ainda me lembro muito bem da minha opinião   juvenil sobre retidão moral, que em geral chamamos de caráter; toda insistência nessa virtude teria me parecido hipócrita, porque isso também achávamos ser algo natural e assim de pouca importância, uma qualidade não decisiva, por exemplo, na avaliação de uma pessoa. Sem dúvida, de vez em quando éramos confrontados com a fraqueza moral, com a falta de firmeza ou lealdade, com essa rendição curiosa, quase automática, à pressão, especialmente da opinião pública, que é tão sintomática das camadas educadas de certas sociedades, mas não fazíamos ideia de como essas questões eram sérias e menos ainda de aonde poderiam nos levar. Não conhecíamos muito sobre a natureza desses fenômenos, e receio que nos importávamos ainda menos. Bem, aconteceu que nos seria dada uma ampla oportunidade de aprender. Para a minha geração e as pessoas da minha origem, a lição começou em 1933 e terminou quando não só os judeus alemães, mas o mundo inteiro, tiveram notícia das monstruosidades que ninguém julgava possíveis no início. O que aprendemos desde então, e não é de modo algum pouco importante, pode ser contado como adições e ramificações do conhecimento adquirido durante aqueles primeiros doze anos, de 1933 a 1945. Muitos de nós precisamos dos últimos vinte anos para nos reconciliarmos com o que aconteceu, não em 1933, mas em 1941, 1942 e 1943, até o amargo fim. E com isso não me refiro à dor e tristeza pessoais, mas ao próprio horror com o qual, como podemos ver agora, nenhum dos grupos interessados foi capaz de se reconciliar. Os alemães cunharam para todo esse complexo o termo altamente questionável de seu “passado incontrolado" (unmasteredpast). Bem, a impressão que temos hoje, depois de tantos anos, é que esse passado alemão ainda continua a ser de certo modo incontrolável para uma boa parte do mundo civilizado. Na época o próprio horror, na sua nua monstruosidade, parecia, não apenas para mim, mas para muitos outros, transcender todas as categorias morais e explodir todos os padrões de jurisdição; era algo que os homens não podiam punir adequadamente, nem perdoar. E nesse horror sem palavras, receio, todos tendemos a esquecer as lições estritamente morais e controláveis que tínhamos aprendido antes, e que nos seriam ensinadas de novo, em inúmeras discussões, tanto dentro como fora dos tribunais.

[ARENDT  , Hannah. Responsabilidade e julgamento. Tr. Rosaura Einchenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 84-85]

Original

My early intellectual formation occurred in an atmosphere where nobody paid much attention to moral questions; we were brought up under the assumption: Das Moralische versteht sich von selbst, moral conduct is a matter of course. I still remember quite well my own youthful opinion of the moral rectitude we usually call character; all insistence on such virtue would have appeared to me as Philistine, because this, too, we thought was a matter of course and hence of no great importance—not   a decisive quality, for instance, in the evaluation of a given person  . To be sure, every once in a while we were confronted with moral weakness, with lack of steadfastness or loyalty, with this curious, almost automatic yielding under pressure, especially of public opinion, which is so symptomatic of the educated strata of certain societies, but we had no idea   how serious such things were and least of all where they could lead. We did not know much about the nature of these phenomena, and I am afraid we cared even less. Well, it turned out that we would be given ample opportunity to learn. For my generation and people of my origin, the lesson began in 1933 and it ended not when just German Jews but the whole world had been given notice of monstrosities no one believed possible at the beginning. What we have learned since, and it is by no means unimportant, can be counted as additions and ramifications of the knowledge acquired during those first twelve years, from 1933 to 1945. Many of us have needed the last   twenty years in order to come to terms with what happened, not in 1933, but in 1941 and 1942 and 1943, up to the bitter end. And by this, I do not mean personal grief and sorrow, but the horror itself to which, as we can see now, none of the concerned parties has as yet been able to reconcile itself. The Germans have coined for this whole complex the highly questionable term of their “unmastered past.” Well, it looks as though today, after so many years, this German past has turned out to remain somehow unmanageable for a good part of the civilized world. At the time the horror itself, in its naked monstrosity, seemed not only to me but to many others to transcend all moral categories and to explode all standards of jurisdiction; it was something men could neither punish adequately nor forgive. And in this speechless horror, I fear, we all tended to forget the strictly moral and manageable lessons we had been taught before, and would be taught again, in innumerable discussions, both inside and outside of courtrooms.

"Personal Responsihility Under Dictatorship", in ARENDT, Hannah. Responsability and Judgement. New York: Schocken, 2003 (ebook) [RJ]


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