Página inicial > Fenomenologia > Arendt (CH:§32) – O caráter processual da ação

A CONDIÇÃO HUMANA

Arendt (CH:§32) – O caráter processual da ação

Capítulo V - 32 O caráter processual da ação

sexta-feira 15 de outubro de 2021

Roberto Raposo

A instrumentalização da ação e a degradação da política em um meio para atingir outra coisa certamente jamais conseguiram eliminar de fato a ação, evitar que ela seja uma das experiências humanas decisivas, nem destruir por completo o domínio dos assuntos humanos. Vimos anteriormente que, em nosso mundo, a aparente eliminação do trabalho, como esforço doloroso ao qual toda vida humana está vinculada, teve, em primeiro lugar, a consequência de que a obra é agora executada à maneira do trabalho, enquanto os produtos da obra, objetos destinados ao uso, passaram a ser consumidos como se fossem meros bens de consumo. Analogamente, a tentativa de eliminar a ação em virtude de sua incerteza e de salvar de sua fragilidade os assuntos humanos, tratando-os como se fossem ou pudessem vir a ser produtos planejados da fabricação humana, resultou, em primeiro lugar, na canalização da capacidade humana de agir, de iniciar processos novos e espontâneos, que jamais existiriam sem os homens, para uma atitude em relação à natureza que, até o último estágio da era moderna, se limitara a explorar as leis naturais e a fabricar objetos a partir de materiais naturais. O comentário recente e casual de um cientista, que sugeriu seriamente que a “pesquisa básica é quando estou fazendo o que não sei que estou fazendo” [1] talvez seja o melhor exemplo da medida em que começamos a agir, no sentido mais literal da palavra, na natureza.

Isso começou, de modo bastante inofensivo, com o experimento, no qual os homens já não se contentavam em observar, registrar e contemplar aquilo que a natureza entregava prontamente em sua própria aparência, mas passaram a prescrever condições e a provocar processos naturais. O que, na época, se transformou em uma capacidade sempre crescente de deflagrar processos elementares, os quais, sem a interferência dos homens, teriam continuado adormecidos e talvez jamais ocorressem, terminou finalmente em uma verdadeira arte de “fabricar” a natureza, isto é, de criar processos “naturais” que, sem os homens, jamais existiriam e que a natureza terrena, por si mesma, parece incapaz de executar, embora processos semelhantes ou idênticos possam ser fenômenos comuns no universo que circunda a Terra. Com a introdução do experimento, no qual prescrevemos condições concebidas pelo homem aos processos naturais e forçamo-los a se ajustarem a padrões criados pelo homem, acabamos por aprender a “repetir o processo que ocorre no Sol” isto é, a extrair dos processos naturais da Terra aquelas energias que, sem nossa intervenção, só se produzem no universo.

O próprio fato de que as ciências naturais tenham se tornado exclusivamente ciências de processos e, em seu último estágio, ciências de “processos sem retorno” potencialmente irreversíveis e irremediáveis, indica claramente que, seja qual for a força cerebral necessária para iniciá-los, a verdadeira capacidade humana subjacente que poderia desencadear sozinha esse desdobramento não é nenhuma capacidade “teórica” nem a contemplação ou a razão, mas a aptidão humana para agir, para iniciar novos processos sem precedentes, cujo resultado é incerto e imprevisível, quer sejam deflagrados no domínio humano, quer no domínio natural.

Nesse aspecto da ação – extremamente importante para a era moderna, para seu enorme alargamento das capacidades humanas, assim como para seus sem precedentes conceito e consciência da história – desencadeiam-se processos de resultado imprevisível, de sorte que a incerteza, mais que a fragilidade, passa a ser o caráter decisivo dos assuntos humanos. Essa propriedade da ação havia, de modo geral, passado despercebida na Antiguidade, e, para dizer o mínimo, mal encontrou uma expressão adequada na filosofia antiga, para a qual o próprio conceito de história, tal como o conhecemos, era inteiramente estranho. O conceito central das duas ciências inteiramente novas da era moderna, tanto da ciência natural como da ciência histórica, é o conceito de processo, e a efetiva experiência humana em que esse conceito se baseia é a ação. Só podemos conceber a natureza e a história como sistemas de processos porque somos capazes de agir, de iniciar nossos próprios processos. É verdade que esse caráter do pensamento moderno veio à luz pela primeira vez na ciência da história, que, desde Vico, vem sendo conscientemente apresentada como “ciência nova” ao passo que decorreram vários séculos até que as ciências naturais fossem forçadas, pelos próprios resultados de suas realizações triunfais, a trocar um obsoleto arcabouço de conceitos por um vocabulário surpreendentemente semelhante ao empregado nas ciências históricas.

[ARENDT  , Hannah. A Condição Humana.Tr. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense, 2020 (epub)]

Original

The instrumentalization of action and the degradation of politics into a means for something else has of course never really succeeded in eliminating action, in preventing its being one of the decisive human experiences, or in destroying the realm of human affairs altogether. We saw before that in our world the seeming elimination of labor, as the painful effort to which all human life is bound, had first of all the consequence that work is now performed in the mode of laboring, and the products of work, objects for use, are consumed as though they were mere consumer goods. Similarly, the attempt to eliminate action because of its uncertainty and to save human affairs from their frailty by dealing with them as though they were or could become the planned products of human making has first of all resulted in channeling the human capacity for action, for beginning new and spontaneous processes which without men never would come into existence, into an attitude toward nature which up to the latest stage of the modern age had been one of exploring natural laws and fabricating objects out of natural material. To what an extent we have begun to act into nature, in the literal sense of the word, is perhaps best illustrated by a recent, casual remark of a scientist who quite seriously suggested that “basic research is when I am doing what I don’t know what I am doing.”

This started harmlessly enough with the experiment   in which men were no longer content to observe, to register, and contemplate whatever nature was willing to yield in her own appearance, but began to prescribe conditions and to provoke natural processes. What then developed into an ever-increasing skill in unchaining elemental processes, which, without the interference of men, would have lain dormant and perhaps never have come to pass, has finally ended in a veritable art of “making” nature, that is, of creating “natural” processes which without men would never exist and which earthly nature by herself seems incapable of accomplishing, although similar or identical processes may be commonplace phenomena in the universe surrounding the earth. Through the introduction of the experiment, in which we prescribed man-thought conditions to natural processes and forced them to fall   into man-made patterns, we eventually learned how to “repeat the process that goes on in the sun,” that is, how to win from natural processes on the earth those energies which without us develop only in the universe.

The very fact that natural sciences have become exclusively sciences of process and, in their last   stage, sciences of potentially irreversible, irremediable “processes of no return” is a clear indication that, whatever the brain power necessary to start them, the actual underlying human capacity which alone could bring about this development is no “theoretical” capacity, neither contemplation nor reason, but the human ability to act—to start new unprecedented processes whose outcome remains uncertain and unpredictable whether they are let loose in the human or the natural realm.

In this aspect of action—all-important to the modern age, to its enormous enlargement of human capabilities as well as to its unprecedented concept and consciousness of history—processes are started whose outcome is unpredictable, so that uncertainty rather than frailty becomes the decisive character of human affairs. This property of action had escaped the attention of antiquity, by and large, and had, to say the least, hardly found adequate articulation in ancient philosophy, to which the very concept of history as we know it is altogether alien. The central concept of the two entirely new sciences of the modern age, natural science no less than historical, is the concept of process, and the actual human experience underlying it is action. Only because we are capable of acting, of starting processes of our own, can we conceive of both nature and history as systems of processes. It is true that this character of modern thinking first came to the fore in the science of history, which, since Vico, has been consciously presented as a “new science,” while the natural sciences needed several centuries before they were forced by the very results of their triumphal achievements to exchange an obsolete conceptual framework for a vocabulary that is strikingly similar to the one used in the historical sciences.


Ver online : Hannah Arendt


ARENDT, H. The human condition. 2nd ed ed. Chicago: University of Chicago Press, 1998. [HC:§32]


[1Citado de uma entrevista de Wernher von Braun, publicada em The New York Times em 16 de dezembro de 1957.