Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

Página inicial > Fenomenologia > Arendt (CH:§2) – três modos de vida (bioi)

Arendt (CH:§2) – três modos de vida (bioi)

sexta-feira 27 de dezembro de 2019

Lafer

Aristóteles   distinguia três modos de vida (bioi) que os homens podiam escolher livremente, isto é, em inteira independência das necessidades da vida e das relações delas decorrentes. Esta condição prévia de liberdade eliminava qualquer modo de vida dedicado basicamente à sobrevivência do indivíduo — não apenas o labor, que era o modo de vida do escravo, coagido pela necessidade de permanecer vivo e pela tirania do senhor, mas também a vida de trabalho dos artesãos livres e a vida aquisitiva do mercador. Em uma palavra, excluía todos aqueles que, involuntária ou voluntariamente, permanente ou temporariamente, já não podiam dispor em liberdade dos seus movimentos e ações. [1] Os três modos de vida restantes têm em comum o fato de se ocuparem do «belo», isto é, de coisas que não eram necessárias nem meramente úteis: a vida voltada para os prazeres do corpo, na qual o belo é consumido tal como é dado; a vida dedicada aos assuntos da polis  , na qual a excelência produz belos feitos; e a vida do filósofo, dedicada à investigação e à contemplação das coisas eternas, cuja beleza perene não pode ser causada pela interferência produtiva do homem nem alterada através do consumo humano. [2] (ARENDT  , Hannah. A Condição Humana. Tr. Celso Lafer. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 20-21)

Original

Aristotle distinguished three ways of life (bioi) which men might choose in freedom, that is, in full independence of the necessities of life and the relationships they originated. This prerequisite of freedom ruled out all ways of life chiefly devoted to keeping one’s self alive—not   only labor, which was the way of life of the slave, who was coerced by the necessity to stay alive and by the rule of his master, but also the working life of the free craftsman and the acquisitive life of the merchant. In short, it excluded everybody who involuntarily or voluntarily, for his whole life or temporarily, had lost the free disposition of his movements and activities. The remaining three ways of life have in common that they were concerned with the “beautiful,” that is, with things neither necessary nor merely useful: the life of enjoying bodily pleasures in which the beautiful, as it is given, is consumed; the life devoted to the matters of the polis, in which excellence produces beautiful deeds; and the life of the philosopher devoted to inquiry into, and contemplation of, things eternal, whose everlasting beauty can neither be brought about through the producing interference of man nor be changed through his consumption of them. (ARENDT, H. The human condition. 2nd ed ed. Chicago: University of Chicago Press, 1998. [HC:§2])


Ver online : Hannah Arendt


[1William L. Westermann («Between Slavery and Freedom», American Historical Review. Vol. L (1945)) afirma que o «enunciado de Aristóteles… de que os artífices vivem numa condição de escravidão limitada, significa que o artífice, ao fazer um contrato de trabalho, dispunha de dois dos quatro elementos de seu status de homem livre (viz., liberdade de atividade econômica e direito de ir e vir), mas por vontade própria e temporariamente»; fatos citados por Westermann demonstram que a liberdade, na época, era concebida como consistindo em «status, inviolabilidade pessoal, liberdade de atividade econômica e direito de ir e vir» e que, consequentemente, a escravidão «era a ausência destes quatro atributos». Aristóteles, ao enumerar os «modos de vida» na Ética a Nicomaco (i.5) e na Ética a Eudemo (1215a35 ff.), nem chega a mencionar o modo de vida do artífice; para ele, é óbvio que um banausos não é livre (cf. Política 1337b5). Menciona, porém, o modo de vida do «ganhador de dinheiro» para rejeitá-lo, uma vez que também é «adotado sob compulsão» (Ét. a Nic. 1096a5). Na Ética a Eudemo, fica salientado que o critério é a liberdade: ele enumera somente aqueles modos de vida escolhidos ep’ exousian.

[2Para a oposição entre o belo e o necessário e útil, veja-se Política 1333a30 ff., 1332b32.