O debate que o presente título evoca ultrapassa em muito os limites de uma discussão sobre o fundamento das ciências sociais. Ele coloca em jogo o que chamarei de gesto filosófico de base. Seria esse gesto o reconhecimento das condições históricas nas quais toda compreensão humana está submetida, sob o regime da finitude? Ou seria, em última instância, um gesto de desafio, um gesto crítico, indefinidamente retomado e incessantemente dirigido contra a "falsa consciência", contra as distorções da comunicação humana, por detrás das quais dissimula-se o exercício permanente da dominação e da violência? Eis o desafio de um debate que, desde o início, parece estar estreitamente vinculado ao domínio da epistemologia das ciências humanas. Esse desafio parece enunciar-se nos termos de uma alternativa: ou a consciência hermenêutica ou a consciência crítica. Mas seria isso mesmo? Não é a própria alternativa que deve ser recusada? Seria possível uma hermenêutica capaz de fazer justiça à crítica das ideologias, quer dizer, susceptível de mostrar sua necessidade do fundo mesmo de suas próprias exigências? Como se pode notar, o desafio é por demais complexo. Inicialmente, não iremos nos aventurar nele em termos muito genéricos e assumindo uma atitude bastante ambiciosa. Preferimos tomar por eixo de referência uma discussão contemporânea, pois tem a vantagem de apresentar o problema em forma de alternativa. Se esta deve, enfim, ser ultrapassada, pelo menos não será na ignorância das dificuldades a serem superadas.
Os dois protagonistas da alternativa são: do lado hermenêutico, Hans-Georg Gadamer , do lado crítico, Jürgen Habermas. O dossiê de sua polêmica pertence hoje ao domínio público. Foi parcialmente reproduzido no pequeno volume Hermeneutik und Ideologickritik, publicado por Suhrkamp, em 1971 [1]. É desse dossiê que extrairei as Unhas de força do conflito que opõe hermenêutica e teoria crítica das ideologias. Tomarei por pedra de toque do debate a apreciação da tradição nas duas filosofias. À sua apreciação positiva, pela hermenêutica, responde o enfoque suspeitador da teoria das ideologias, que pretende ver nesta apenas a expressão sistematicamente distorcida da comunicação, sob os efeitos de um exercício não reconhecido da violência. A escolha dessa pedra de toque apresenta a vantagem de se evidenciar, de imediato, um confronto versando sobre a "reivindicação de universalidade" da hermenêutica. Se, com efeito, a crítica das ideologias tem certo interesse, é na medida em que constitui uma disciplina não-hermenêutica, que se inscreve fora da esfera de competência de uma ciência ou de uma filosofia da interpretação, e que marca seu limite fundamental.
Limitar-me-ei, na primeira parte do presente estudo, a apresentar as peças do dossiê, o que farei em termos de uma alternativa simples: ou a hermenêutica, ou a crítica das ideologias. Reservarei para a segunda parte uma reflexão de caráter mais pessoal, centrada sobre as duas seguintes questões:
- em que condições uma filosofia hermenêutica pode dar conta da exigência legítima de uma crítica das ideologias? Seria ao preço de sua reivindicação de universalidade e de uma reformulação bastante profunda de seu programa e de seu projeto?
- em que condições uma crítica das ideologias é possível? Pode ser, em última instância, despojada de pressupostos hermenêuticos?
Devo dizer que nenhum intuito de anexação e que nenhum sincretismo presidirão a esse debate. Sou tentado a dizer, com Gadamer , aliás, que cada uma das duas teorias fala de um lugar diferente, mas que cada uma pode reconhecer a reivindicação de universalidade da outra, de tal forma que o lugar de uma se inscreva na estrutura da outra.