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Interpretação e Ideologias

Ricoeur (1977) – Crítica das Ideologias

Tr. Hilton Japiassu

quinta-feira 22 de junho de 2023, por Cardoso de Castro

Os dois protagonistas da alternativa são: do lado hermenêutico, Hans-Georg Gadamer  , do lado crítico, Jürgen Habermas.

O debate que o presente título evoca ultrapassa em muito os limites de uma discussão sobre o fundamento das ciências sociais. Ele coloca em jogo o que chamarei de gesto filosófico de base. Seria esse gesto o reconhecimento das condições históricas nas quais toda compreensão humana está submetida, sob o regime da finitude? Ou seria, em última instância, um gesto de desafio, um gesto crítico, indefinidamente retomado e incessantemente dirigido contra a "falsa consciência", contra as distorções da comunicação humana, por detrás das quais dissimula-se o exercício permanente da dominação e da violência? Eis o desafio de um debate que, desde o início, parece estar estreitamente vinculado ao domínio da epistemologia das ciências humanas. Esse desafio parece enunciar-se nos termos de uma alternativa: ou a consciência hermenêutica ou a consciência crítica. Mas seria isso mesmo? Não é a própria alternativa que deve ser recusada? Seria possível uma hermenêutica capaz de fazer justiça à crítica das ideologias, quer dizer, susceptível de mostrar sua necessidade do fundo mesmo de suas próprias exigências? Como se pode notar, o desafio é por demais complexo. Inicialmente, não iremos nos aventurar nele em termos muito genéricos e assumindo uma atitude bastante ambiciosa. Preferimos tomar por eixo de referência uma discussão contemporânea, pois tem a vantagem de apresentar o problema em forma de alternativa. Se esta deve, enfim, ser ultrapassada, pelo menos não será na ignorância das dificuldades a serem superadas.

Os dois protagonistas da alternativa são: do lado hermenêutico, Hans-Georg Gadamer  , do lado crítico, Jürgen Habermas. O dossiê de sua polêmica pertence hoje ao domínio público. Foi parcialmente reproduzido no pequeno volume Hermeneutik und Ideologickritik, publicado por Suhrkamp, em 1971 [1]. É desse dossiê que extrairei as Unhas de força do conflito que opõe hermenêutica e teoria crítica das ideologias. Tomarei por pedra de toque do debate a apreciação da tradição nas duas filosofias. À sua apreciação positiva, pela hermenêutica, responde o enfoque suspeitador da teoria das ideologias, que pretende ver nesta apenas a expressão sistematicamente distorcida da comunicação, sob os efeitos de um exercício não reconhecido da violência. A escolha dessa pedra de toque apresenta a vantagem de se evidenciar, de imediato, um confronto versando sobre a "reivindicação de universalidade" da hermenêutica. Se, com efeito, a crítica das ideologias tem certo interesse, é na medida em que constitui uma disciplina não-hermenêutica, que se inscreve fora da esfera de competência de uma ciência ou de uma filosofia da interpretação, e que marca seu limite fundamental.

Limitar-me-ei, na primeira parte do presente estudo, a apresentar as peças do dossiê, o que farei em termos de uma alternativa simples: ou a hermenêutica, ou a crítica das ideologias. Reservarei para a segunda parte uma reflexão de caráter mais pessoal, centrada sobre as duas seguintes questões:

  • em que condições uma filosofia hermenêutica pode dar conta da exigência legítima de uma crítica das ideologias? Seria ao preço de sua reivindicação de universalidade e de uma reformulação bastante profunda de seu programa e de seu projeto?
  • em que condições uma crítica das ideologias é possível? Pode ser, em última instância, despojada de pressupostos hermenêuticos?

Devo dizer que nenhum intuito de anexação e que nenhum sincretismo presidirão a esse debate. Sou tentado a dizer, com Gadamer  , aliás, que cada uma das duas teorias fala de um lugar diferente, mas que cada uma pode reconhecer a reivindicação de universalidade da outra, de tal forma que o lugar de uma se inscreva na estrutura da outra.


Ver online : Paul Ricoeur


[1Eis, em poucas palavras, o histórico do debate. Em 1965 aparece a segunda edição de Wahrheit und Methode, de H. G. Gadamer, publicado, pela primeira vez, em 1960. Essa edição contém um prefácio que responde a um primeiro grupo de críticas. Habermas lança um primeiro ataque em 1967 em sua Lógica das ciências humanas. Tal ataque é dirigido contra a parte de Verdade e método que estamos analisando, a saber, contra a reabilitação do preconceito, da autoridade e da tradição, e contra a famosa teoria da "consciência histórica eficiente". No mesmo ano, Gadamer publica os Kleine Schriften I, uma conferência de 1965, intitulada "A universalidade do problema hermenêutico", de que se encontra uma tradução francesa Archives de Philosophie (1970, pp. 3-17), bem como outro ensaio sobre "Filosofia, hermenêutica e crítica das ideologias", também traduzido nos Archives de Philosophie (1971, pp. 207-230). Habermas responde num longo ensaio: "A reivindicação de universalidade da hermenêutica", publicado na Festschrift, em homenagem a Gadamer, intitulada Hermenêutica e dialética I (1970). Todavia, a obra principal de Habermas que consideraremos intitula-se Erkenntnis und Interesse (Connaissance et intérêts, 1968). Esta obra contém, no apêndice, uma importante exposição de princípio e de método publicada em 1965 intitulada "Perspectives". Sua concepção das formas atuais da ideologia encontra-se em Tecnologia e ciência compreendidas como ideologia, obra dedicada a Herbert Marcuse por ocasião de seu 70.° aniversário em 1968.