Em todo caso, o próprio ver foi posto entre parênteses pela redução e não é enquanto fundados por ele, enquanto encontram nele o que faria deles modos do pensamento, que o sentido e a imaginação podem ser assimilados na segunda definição como modos absolutamente certos e que escapam da dita redução – muito menos, aliás, poderia o próprio intellectus se não estivesse sustentado, em seu fundo, pelo poder de um modo mais originário de aparecer, irredutível a esse poder e, além disso, irrecusável. O exame de um desses modos, que é citado não menos de cinco vezes na segunda definição – “dubitans, affirmans, negans, nolens” – a saber, a vontade, vai mostrar que não é o videre do ver, mas somente a parecença [semblence] mais originária do videor que determina, ao mesmo tempo que a “certeza” do pensamento, a inerência nele de seus modos.
Ora, todo o cartesianismo formula a diferenciação e, até mesmo, a oposição expressa dessas duas “faculdades” que são o entendimento e a vontade; a teoria do juízo e o próprio método, em muitos de seus aspectos, repousam sobre sua dissociação. Mas, não é só isso. Não se pode esquecer de que o reconhecimento do aparecer em sua fulguração inicial, o reconhecimento da essência do pensamento e de seu ser nele, tem o seu cumprimento no cogito a partir da própria vontade, cuja dúvida é tão-somente uma modalidade. Pois se essa dúvida não é mais a dúvida natural que reclama suas razões ao entendimento, mas a dúvida hiperbólica, a dúvida contra natura e contra a natureza do entendimento, contra a ratio, é precisamente porque é um modo da vontade infinita, vontade que é em mim idêntica àquela que está em Deus – da vontade que pode querer tudo o que quer, absolutamente, incondicionalmente, e sem limite, que pode querer que o verdadeiro seja falso e que o ver, aqui compreendido sob a forma da evidência que repousa nele e está embebido de sua luz, seja um não ver. Mais uma vez, o entendimento não intervém, de modo algum, no processo da redução, a não ser para ser rejeitado por ele: como poderia constituir, pelo contrário, a essência começante à qual esse processo lhe faz regressar e que ele próprio descobre em sua irredutibilidade?
E, no entanto, a vontade não deverá também revelar-se, caso seja necessário ser algo, ao invés de nada? Não será, como algo, que ela permanece, apesar de sua infinidade, um modo de pensamento? E não se tornará então tributária desse entendimento que pretendia excluir? Aqui está, para dizer a verdade, um paradoxo característico do cartesianismo, o paradoxo segundo o qual a vontade infinita é apenas o simples modo de uma essência [78] finita. Mas o paradoxo não é do tipo insuperável e efetivo se for apreendido em sua significação radical, quer dizer, fenomenológica. [MHPsique:77-78]