Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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Henry (2010:4) – a redução galileana

terça-feira 17 de dezembro de 2019

Penso que o saber e a acção formaram uma unidade harmoniosa durante muito tempo, mas que essa unidade foi rompida na aurora da modernidade, no momento em que Galileu   cumpre o acto proto-fundador da ciência moderna e de uma nova era da qual somos, conscientes ou não, herdeiros, na medida em que partilhamos largamente os seus credos. Esse acto consistiu na prática de uma redução (à qual dei o nome de “redução galileana”) cuja génese é esta: o mundo em que vivemos e o qual se trata de compreender é constituído por corpos materiais extensos, situados uns ao lado dos outros, com formas e figuras determinadas. Ora, para além das propriedades que acabo de enunciar, acontece que esses corpos possuem igualmente outras tais como a cor, o odor, o sabor… Dir-se-á que essas características são completamente inessenciais porque esses corpos materiais poderiam muito bem existir sem elas. Mas de onde podem provir essas propriedades contingentes, desinteressantes? Elas assentam no facto de sermos também organismos vivos, animais, e seriam diferentes, até mesmo inexistentes, se essa organização biológica não fosse o que é. Por conseguinte se queremos verdadeiramente conhecer o mundo, teremos que dar conta dessas formas materiais e não ficarmos, como até então o fizera a Escolástica, nessas qualidades além do mais bem passageiras, totalmente variáveis de um para outro indivíduo, incapazes de fundar uma proposição científica universalmente válida. Apenas as propriedades dos corpos são necessárias e permitem superar o simples discurso do tipo: “acontece que fico triste quando o céu está encoberto…” Porque enquanto precisamos apenas de um conhecimento subjectivo, isto é completamente incerto, para alcançarmos as qualidades sensíveis, para conhecermos as formas e as figuras dos corpos materiais, pelo contrário, dispomos de um conhecimento racional, rigoroso, que enuncia propriedades universais e, enquanto tais, científicas: a geometria. Será preciso então pôr de parte os sentidos e o conhecimento sensível e aplicar a geometria ao conhecimento dos corpos materiais e, desse modo, será possível criar uma ciência. E foi com efeito o que se fez, alcançando os progressos que hoje conhecemos. A essa redução galileana podemos atribuir dois significados: ou simplesmente metodológico, dizendo, sem mais, que para se conhecer o universo material não se deve ter em conta as qualidades sensíveis nem as sensações ou então ontológicas e afirma-se que a realidade são os corpos materiais. Todo o resto, as qualidades sensíveis, tudo o que em geral é subjectivo, constitui um mundo de aparências puramente ilusórias, totalmente contingentes e ligadas à nossa constituição de organismo vivo. É preciso compreender o alcance desta redução quando se lhe atribui um alcance ontológico. Isso significa, por exemplo, que se considero um homem que toma uma mulher em seus braços e a abraça, a série subjectiva de sensações eróticas, desejos, temores, é uma história fantasmática, já que na realidade de nada mais se trata do que um simples bombardeamento de partículas… (HENRY, Michel. As Ciências e a Ética. Lisboa: LusoSofia, 2010, p. 4)


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