Página inicial > Hermenêutica > Gilvan Fogel (2005:175-176) – vida é expiação e punição
Gilvan Fogel (2005:175-176) – vida é expiação e punição
quinta-feira 24 de outubro de 2024
Suponhamos agora que o “ato”, a “coisa” que, sim, foi feita, porém “mal” feita ou absolutamente tal como “não” deveria ter sido feita, suponhamos que tal “coisa” ou “feito” seja a própria vida, a própria existência. Assim sendo, a vida é nela mesma, em sua constituição ou textura mais própria culpada. No movimento de volta, de retorno sobre o feito com o propósito de desfazer, o que precisará ser desfeito passa a ser a própria vida, a existência nela mesma, que se mostrará como aquilo que deve, que precisa ser desfeito, para assim reconquistar ou readquirir (redimir-se!) a instância anterior ao que foi mal feito, fora disso que não devia ser tal como é, a saber, o viver ou o existir mesmos. Então, queda — isto é, o subitamente dar-se conta vivendo, existindo — é culpa, melhor, é culpada e por culpa se está entendendo o sentimento de autoria atravessado de remorso, varado de má consciência.
O trabalho, a tarefa é insana, pois, uma vez que o feito se recusa a ser desfeito — por princípio, ele recua, adia-se e protela-se indefinidamente —, na mesma proporção, isto é, indefinidamente, ergue-se ou restaura-se a necessidade e o direito disso mesmo precisar ser desfeito. Na necessidade e no direito eternos, infinitos, a busca, o esforço de redenção, isto é, de desfazer o feito, também é eterno, também infinito. Se o viver é tal como não devia ou não podia ser e se este “ser tal como não deve ser” for interpretado como expiação e punição, então eterna e infinita são também a expiação e a punição. A expiação e a punição são a via, o caminho pretendido para desfazer o feito. Assim sendo, eterna ou infinitamente o mal feito reivindica a necessidade e o direito de ser desfeito, de precisar ser desfeito — para assim atingir a redenção (a solução!) almejada. A punição, a expiação, já se disse, visam, por elas e nelas mesmas, desfazer o feito. Mas eterna e infinitamente a vida se ergue e se “re-ergue” como coisa mal feita, como culpa. Logo, a tarefa não tem fim e se for assumida [176] integralmente em toda sua insensatez — e a estrutura assim ο impõe — ela se fará lascívia, cobiça da e na ação, do e no ativismo, como também da e na inércia, do e no “em vão”, isto é, tal tarefa faz-se obra de sanha (Hybris), seja no ativismo, na desvairada cobiça, seja no tédio, na “voluptuosidade do aborrecimento humano”, como diz nosso Machado, nas Memórias Póstumas de Brás Cubas.
E vida aparece como tendo sido “mal feita” porque é limitação, quer dizer, pobreza, deficiência, carência — enfim, dor, enquanto necessário e intransferível esforço, trabalho ou labor para fazer vir a ser uma possibilidade, uma “falta”, um “oco”, que se mostra como precisando ser irremediavelmente. Obedecendo ao esquema de compreensão acima esboçado, onde há dor, há também expiação e punição e, então, a vida em si mesma, em sua própria constituição ou textura, é expiação e punição (“viver”, “ser”, agir, atuar é expiação e punição) e, assim, todo seu fazer e ocupar-se precisa ser esforço para se desfazer e assim se redimir, ou seja, alcançar, readquirir uma presumida instância perdida, anterior à própria vida, pré-vida — o “jardim”, o Éden.
Grosso modo, então meio caricaturalmente, é esse o esquema de compreensão metafísico-cristã da vida, da existência, em cujo horizonte cresce e aparece o conhecimento —melhor: o conhecimento puro, desinteressado, imaculado é emergência e concretização dessa compreensão velada e vigente. Portanto, desta pré-compreensão.
[FOGEL , Gilvan. Conhecer é Criar. Ijuí: Unijuí, 2005]
Ver online : Gilvan Fogel