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Gadamer (VM): ponto de vista hermenêutico

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

Não se pode chamar de experiência como tal o ponto de partida dos sentidos e de seus dados. Também aprendemos a ver como os dados de nossos sentidos articulam-se cada vez em contextos interpretativos. O mesmo acontece com a percepção — que toma algo por verdadeiro — que já interpretou os testemunhos dos sentidos antes da imediaticidade dos seus dados. Podemos pois dizer que, do ponto de vista hermenêutico, a formação dos conceitos já está sempre condicionada pela língua falada. Se isto for verdade, o único caminho filosófico convincente será tomar consciência da relação entre palavra e conceito como uma relação que determina nosso pensar. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 7.

Basta darmos apenas alguns passos na análise dessa suposta identidade para percebermos em que tipo de dogmatismos se sustenta. Um problema assim é como uma pergunta não colocada. Toda pergunta realmente colocada tem uma motivação. Sabe-se por que se pergunta algo e deve-se saber por que se é perguntado sobre algo, quando se quer realmente entender — e se for o caso — responder à pergunta. No exemplo do problema da liberdade, então, parece-me convincente que a colocação da pergunta não se torna compreensível pela suposição de que se trata de um problema idêntico da liberdade. Antes, o que realmente importa é considerar as perguntas reais, da maneira como elas se colocam — e não as possibilidades de perguntas formalizadas de maneira abstrata — , como o que vale a pena compreender. Toda pergunta tem uma motivação. Toda pergunta recebe seu sentido do modo de sua motivação. Sabe-se disso quando se formula uma "pergunta pedagógica", quando o outro nos pergunta algo sem querer saber realmente a resposta. Nesses casos, sabemos perfeitamente que o interrogador já sabe aquilo sobre o que pergunta. Se já sei a resposta, que tipo de pergunta é esta? Do ponto de vista hermenêutico, a pergunta pedagógica torna-se antipedagógica. Só se justifica pelo fato de a evolução do questionamento acabar superando a falta de naturalidade dessas perguntas, deixando-as culminar em perguntas "abertas", pois só nessas perguntas abertas pode mostrar-se a real capacidade de alguém. O fato, porém, de que uma pergunta só se deixe responder quando se sabe por que é feita significa que, também nas [83] grandes perguntas, insolúveis para a filosofia, o sentido da pergunta só se determina pela sua motivação. Quando se fala de "problema da liberdade" trata-se portanto de uma esquematização dogmática, e com a qual se encobre o ponto de vista que dá sentido e compõe verdadeiramente a premência da pergunta, a sua colocação. Justo quanto percebemos que a filosofia pergunta pelo todo, cabe-nos perguntar pelo modo como suas perguntas são colocadas, e isto significa qual a conceptualidade que as move. É essa que cunha de antemão a colocação da pergunta. O que importa, portanto, e o que se deve fixar quando se busca apreender e elaborar a colocação de uma pergunta é como se coloca uma pergunta. Se pergunto, por exemplo, o que significa liberdade numa concepção de mundo regida pela ciência causal de natureza, a colocação da pergunta e, com isso, tudo que está implícito no conceito de causalidade, já estão incluídos no sentido da pergunta. Assim há que se perguntar: O que é causalidade? Ela perfaz todo o âmbito do que é digno de se perguntar na pergunta pela liberdade? Por não se perceber isso é que, nos anos vinte e trinta deste século, pôde surgir a estranha afirmação de que a física moderna teria invalidado a causalidade. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 7.

O certo é que tanto a hermenêutica de Schleiermacher   não está totalmente livre do ar escolástico, um tanto empoeirado, da literatura hermenêutica anterior, como sua obra propriamente filosófica se encontra um pouco à sombra dos outros grandes pensadores idealistas. Ele não tem a força impositiva da dedução fichtiana, nem a elegância especulativa de Scheling e nem a obstinação seminal da arte conceptual de Hegel  . Foi um orador, mesmo quando filosofava. Seus livros são antes de tudo anotações de um orador. Suas contribuições à hermenêutica são, em particular, muito fragmentárias e o que tem mais interesse   do ponto de vista hermenêutico, ou seja, suas observações sobre pensar e falar não se encontram na "hermenêutica" mas nas preleções sobre dialética. Ainda aguardamos uma edição crítica da Dialética, que seja utilizável. O sentido normativo básico dos textos, aquilo que originariamente confere sentido ao esforço hermenêutico, em Schleiermacher encontra-se em segundo plano. Compreender é a repetição da produção originária de ideias, com base na congenialidade dos espíritos. O ensinamento de Schleiermacher tem como pano de fundo sua concepção metafísica da individualização da vida universal. Desse modo, destaca-se o papel da linguagem, e isso numa forma que superou radicalmente a limitação erudita ao escrito. A fundamentação da compreensão feita por Schleiermacher sobre a base do diálogo e do entendimento inter-humano significou no seu conjunto um aprofundamento dos fundamentos da hermenêutica, que no entanto acabou permitindo a edificação de um sistema científico com base hermenêutica. A hermenêutica tornou-se a base de todas as ciências históricas do espírito e não só da teologia. Desaparece então o pressuposto dogmático do caráter "paradigmático" do texto, sob o qual a atividade hermenêutica, tanto a do teólogo como a do filólogo humanista [99] (para não falar do jurista), tinha a função originária de mediação. Com isso liberou-se o caminho para o historicismo. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Também no âmbito da terapia psicanalítica confirma-se o poder emancipatório da reflexão exigida para a vida social. Quando se desmascara a repressão, tira-se a força das falsas coerções. E como nesse caso o estado final de um processo de formação reflexiva deveria fazer coincidir todas as motivações da ação com o sentido que orienta o sujeito que age — objetivo que na situação psicanalítica se vê limitado pela tarefa terapêutica apresentando assim apenas um conceito-limite — , assim também a realidade social só poderia ser apreendida adequadamente, do ponto de vista hermenêutico, num tal estado final fictício. Na realidade, a vida da sociedade consiste numa trama de motivações compreensíveis e coerções reais, de que a investigação sociológica teria que se apropriar num processo de formação crescente, liberando-as para a ação. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

Como mostra Senft, seguindo essa mesma direção, o próprio F.Ch. Baur, por mais que tome o processo histórico como objeto de suas reflexões, pouco contribuiu para o progresso da questão da hermenêutica, uma vez que afirma a autonomia da autoconsciência como base irrestrita. Em sua hermenêutica, Hofmann parece ter levado a sério a historicidade da revelação também do ponto de vista hermenêutico — o que transparece claramente na apresentação de Senft. O conjunto dos ensinamentos que desenvolve é "a explicação da fé cristã, que tem a sua pressuposição no que está ’fora e além de nós’. Não ’fora e além’, considerados do ponto de vista legal, mas inseridos em sua própria história e ’passíveis de experiência’". Esse ponto oferece garantias de que também "a Bíblia é o livro da revelação como memorial de uma história, ou seja, ela representa uma determinada conjuntura de acontecimentos e não um manual de doutrinas gerais". No conjunto, pode-se dizer que a crítica bíblica que a ciência histórica faz ao cânon suscitou a tarefa teológica de reconhecer a historia bíblica como historia, na medida em que tornou sumamente problemática a unidade dogmática da Bíblia, dissolvendo as pressuposições dogmático-racionalistas de uma "doutrina" bíblica. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

A modo de provocação, perguntamos então como se comporta o defensor da filosofia clássica, representado por Strauss, a partir do ponto de vista hermenêutico. Investiguemos isso num exemplo. Strauss mostra claramente que a filosofia política clássica conhece a relação eu-tu-nós, como é chamada na discussão moderna, sob um nome completamente diferente, como amizade. Percebe corretamente que a maneira moderna de pensar, que fala "do problema do tu", procede da posição básica de primazia do ego cogito   cartesiano [418]. Strauss pensa agora compreender por que o antigo conceito de amizade é correto e a formação do conceito moderno é falsa. Aquele que procura compreender o que constitui o Estado e a sociedade terá que falar legitimamente sobre o papel da amizade. Por outro lado, não poderá falar com a mesma legitimidade "com relação ao tu". O tu não é nada sobre o que se possa falar, algo para quem falamos. Se em lugar da função da amizade colocarmos como fundamento o papel do tu, perdemos justamente a essência objetiva e comunicativa do Estado e da sociedade. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.