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Figal (2007:34-35) – compreensão de ser e compreensão de si
domingo 7 de janeiro de 2024
[…] De maneira diversa da filosofia prática de Aristóteles , a hermenêutica da facticidade heideggeriana não depende de nenhuma ontologia porque ela mesma é uma ontologia. “A problemática da filosofia”, assim encontra-se formulado no Relatório-Natorp , diz respeito ao “ser da vida fática” [GA62 :364]. Este fato não pode ser compreendido no sentido de uma mera explicitação desse ser. Como é que isso seria possível, se o ente é, em verdade, múltiplo, mas de qualquer modo apresentado “em vista do um” [1], e se o “sentido de ‘ser’” [GA2 :1], segundo o modelo aristotélico [2], deve ser retido como um e uniforme? Dessa forma, a ontologia da vida fática precisa ser uma “ontologia principial”, de tal modo “que as ontologias regionais mundanas particulares e determinadas recebam, a partir da ontologia da facticidade, o fundamento do problema e o sentido do problema” [GA62 :364]. Isso está fundamentado em Ser e tempo com o pensamento de que toda compreensão de algo em seu ser remonta à compreensão de ser originária, na qual o ser-aí compreende a si mesmo [GA2 :16]. O ser-aí humano é para Heidegger “a condição de possibilidade de toda ontologia” [GA2 :18], e, em verdade, não no sentido trivial de que não haveria nenhuma ontologia sem o homem. O que se tem em vista é muito mais o fato de ser intrínseco a toda ontologia, quer se trate do ser-aí humano ou não, a compreensão de si do ser-aí humano enquanto a possibilidade que a condiciona. Toda ontologia é, então, um entendimento mais ou menos claro do homem em relação a si mesmo.
Neste pensamento é certamente elucidativo o fato de todo sentido de “ser” só poder ser clarificado por sobre a compreensão de ser. De que outra forma a não ser na compreensão esse sentido deveria ser dado? No entanto, daí não se segue que toda compreensão de ser resulta da compreensão do próprio ser. Ao contrário, para apreender algo naquilo que ele é, é preciso que possamos nos abstrair de nosso próprio ser. Se não fosse assim, o outro ser seria sempre apenas uma modificação do próprio ser ou só poderia ser apreendido em contraste com esse. Todavia, esse não é o caso: dito em sintonia com Merleau-Ponty , o fato de nós estarmos em meio às coisas, e, em alguns aspectos, tal como as coisas [3], não é nenhuma modificação de nosso ser determinado em essência de maneira totalmente diversa. Tampouco se trata de algum outro modo de ser, incompatível com o nosso ser propriamente dito, de modo que tomaríamos parte em dois modos de ser diversos. Nosso ser é que só se descerra muito mais em meio às coisas, quando nos imiscuímos no ser das coisas. Isso, por sua vez, só é possível contemplativamente; essa é uma possibilidade da teoria que não pode ser conquistada a partir da autoclarificação da vida humana. Aquilo que pode ser esperado da teoria não é resgatado pela hermenêutica da facticidade.
[FIGAL , Günter. Oposicionalidade. O elemento hermenêutico e a filosofia. Tr. Marco Antônio Casanova . Petrópolis: Vozes, 2007]
Ver online : Günter Figal
[1] Aristóteles, Metafísica IV, 2; 1003a 33
[2] Em um olhar retrospectivo posterior, Heidegger dá claramente a entender esse modelo. Em articulação com a dissertação de Franz Brentano Von der mannigfachen Bedeutung des Seienden nach Aristoteles (Sobre a significação múltipla do ente em Aristóteles — 1862), ele teria sido mobilizado “desde 1907” pela questão: “Se o ente é dito com muitos significados, qual é então a significação diretriz? O que significa ser?” (Martin Heidegger, Meu caminho na fenomenologia, in: Heidegger, Zur Sache des Denkens, Tübingen, 1976, p. 81-90, aqui, p. 81).
[3] Maurice Merleau-Ponty, Le visible et l’invisible (O visível e o invisível), Paris, 1964, p. 180: “chose parmi les choses”.