Heidegger propõe definir a ciência moderna como «uma teoria do real» [1]. «Teoria» não designa aqui uma contemplação passiva da verdade, mas uma elaboração activa que dá forma ao real. A ciência moderna «provoca» o real, «para-o e interpela-o para que este se apresente em cada circunstância como o conjunto da causa e do que é causado, ou seja nas consequências previstas a partir das causas dadas» [2]. Fixa a evolução dos fenômenos em fórmulas matemáticas (leis e teorias) que permitem prever e eventualmente modificar a aparição. O objecto científico, por seu lado, não é o que se mostra, quer dizer o ente tal como ele subsiste no seu ser em si, mas o resultado de uma construção teórica, uma «hipótese» metodológica.
Heidegger não faz aqui um trabalho de epistemologia, mas quer mostrar que na própria ciência, ou melhor no fundo recuado desta, há algo que não é discernido pela ciência mas que à ciência não pode faltar uma vez que esta o pressupõe constantemente, e que não é senão o próprio ser. Com efeito, o objecto da ciência, a Natureza para a Física, não se deixa fechar completamente no quadro traçado por ela. A Física é uma maneira de descrever a Natureza mas não a esgota. «A representação científica», diz Heidegger, «não pode jamais enclausurar o ser da natureza porque a objectividade da natureza mais não é à partida que uma maneira em que a natureza se põe em evidência. Assim, para a ciência da física, a Natureza permanece o incontornável (das Ununmgängliche)» [3]. A Natureza é aquilo a que a Física [92] não pode dar a volta, isto é, cercar na sua plenitude de ser. As leis da Física deixam um resíduo, um incalculável, como Goethe bem viu no seu conflito infeliz com a Física newtoniana. Este incalculável, que é na realidade o essencial da própria natureza, «rege inteiramente» [4] a ciência, uma vez que esta o pressupõe necessariamente, mas continua fundamentalmente inacessível. Heidegger mostra assim simultaneamente os limites do pensamento científico e a necessidade de adoptar uma outra atitude, de desenvolver uma outra maneira de pensar, a que ele chama o pensar meditativo, para abordar esse incontomável que se esconde ao olhar do pensamento calculista e que, ainda que não interrogado, é o mais digno de ser interrogado pois ele diz respeito ou interpela o homem no seu próprio ser. Heidegger lembra, em suma, às ciências que elas procedem da filosofia, que vêm dela e dela se escapam, mas que não poderiam, contudo, substituí-la nem encher o vazio deixado pelo estilhaçamento da filosofia numa multiplicidade de disciplinas científicas (psicologia, sociologia, antropologia, lógica, cibernética, etc.). Lembra igualmente à filosofia que esta não tem, por seu lado, nada a ganhar em se deixar levar por miragens de cientificidade que só podem afastá-la do que lhe está naturalmente atribuído e que ela tem, desde há muito, deixado impensado. Estas análises não passam sem evocar a «crítica» husserliana da ciência moderna na Crise das Ciências Europeias. Husserl considerava nesta conferência de 1935 que a ciência moderna se tinha desenvolvido perdendo de vista o fundamento originário sobre o qual se tinha edificado e que esta ocultação era responsável pela crise que atravessava, qualquer que fosse, aliás, a extensão do seu sucesso. Mesmo se não menciona Husserl , Heidegger faz eco, na sua conferência de 1953, Ciência e Meditação, [93] deste tema husserliano, atribuindo-lhe, no entanto, uma significação nova, uma vez que o fundamento esquecido das ciências, o incalculável sobre o qual elas repousam, e que diz respeito ao homem no mais alto grau, não é mais, como em Husserl , o mundo da vida (die Lebenswelt), mas mais fundamentalmente a verdade do próprio ser.