Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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Blattner (1999:56-57) – o intramundano [innerweltlich]

quarta-feira 25 de setembro de 2024

Estar familiarizado com o intamundano é estar absorvido por ele. Ao realizar suas atividades cotidianas, o Dasein constantemente faz uso do intramundano (ou deixa de fazê-lo). Nas compras de supermercado, o Dasein usa um carro, um carrinho de supermercado, dinheiro e assim por diante. Toda atividade envolve comércio com coisas intramundanas. Até mesmo a contemplação teórica requer algum tipo de configuração prática que a torne possível e a mantenha em andamento, talvez um estudo silencioso ou um quadro-negro: "a pesquisa teórica não deixa de ter sua própria práxis" (SZ  :358; ET69). O termo "absorção" pode sugerir um tipo de preocupação temática, como se, ao fazer compras, o Dasein tivesse que se fixar em seu carrinho de compras. Mas isso não pode ser o que Heidegger quer dizer, pois, afinal de contas, ele argumenta de forma célebre: "É peculiar ao que está primariamente disponível que, em sua disponibilidade, ele, por assim dizer, se retire a fim de estar genuinamente [eigentlich] disponível" (SZ  :69; ET15). Ao fazer compras, o Dasein está concentrado na tarefa que tem em mãos, por exemplo, comprar leite, pão e bananas. O Dasein não está concentrado na parafernália que usa:

Aquilo junto-a o qual as transações cotidianas se mantêm primordialmente também não são as ferramentas em si, mas sim o trabalho, o que está prestes a ser produzido, é com o que o Dasein se preocupa primordialmente e, portanto, também está disponível. (SZ  , pp. 69-70) [1]

A absorção do Dasein no disponível não é, portanto, necessariamente uma absorção temática.

O sentido em que o Dasein é absorvido pode ser entendido como o Dasein se ocupando com o intramundano. É possível ocupar-se com algo a que não se presta atenção explícita. Ao fazer compras, Jones pode se ocupar em manter o carrinho do supermercado em linha reta, mesmo que faça isso sem perceber, ou talvez por hábito. Esse é um dos temas centrais do trabalho de Dreyfus   (1979, 1991; Dreyfus   e Dreyfus  , 1986); não vou repetir seus argumentos aqui. É suficiente observar fenomenologicamente o quanto da interação de uma pessoa com coisas intramundanas ocorre de forma subliminar. Enquanto assiste a um jogo de beisebol e, digamos, concentra-se atentamente na ação no campo, Jones muda de posição para se sentir mais confortável, inclina-se e estica-se para ver além da pessoa à sua frente, coça a cabeça, toma um gole de refrigerante, dá uma mordida no cachorro-quente, afasta uma mosca e ajusta um anel, tudo isso talvez sem perceber. Ao fazer todas essas coisas, Jones se ocupa com as coisas de seu meio.

Vimos acima que Heidegger oferece um argumento explícito no capítulo 5 da divisão 1 de que a compreensão e a afetividade estão interligadas: a afetividade revela os fundamentos importantes com base nos quais se avança para as capacidades. O capítulo 5 não apresenta um argumento análogo para a interligação da absorção com a compreensão e a afetividade. Isso pode ser atribuído principalmente à confusão no capítulo 5 em torno da natureza da decadência [Verfallen]. É provável que Heidegger também tenha pensado que já havia estabelecido suficientemente o ponto no capítulo 3. Lá ele argumenta que a autocompreensão do Dasein é simultaneamente uma compreensão do intramundano. De fato, já encontramos o cerne do argumento, pois ele se encontra no que Heidegger posteriormente chama de "transcendência do mundo". A definição de Heidegger de "mundo", no sentido técnico do termo, é a seguinte:

O fenômeno do mundo é aquilo em que a compreensão se atribui [a alguma compreensão de si mesma] e aquilo em que se permite que entidades [diferentes do Dasein] se mostrem. (SZ  :86; ET18)

[BLATTNER  , William D. Heidegger’s temporal idealism. Cambridge, U.K. ; New York: Cambridge University Press, 1999]


Ver online : William Blattner


[1Esta passagem poderia ser lida de uma forma hostil à minha abordagem: o lidar cotidiano é primariamente em meio ao trabalho, e não às ferramentas; o primeiro, e não o último, está primariamente disponível, precisamente porque o Dasein está tematicamente preocupado com o trabalho, e não com as ferramentas. Isso identificaria o estar em meio à absorção temática. (Vale a pena observar que o "junto-a" na primeira linha da passagem pertence ao verbo "mantém-se", não ao verbo "ser". É somente com este último verbo que se constitui o termo técnico "ser-junto-a").