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Birault (1978:38-39) – finitude e morte

domingo 29 de setembro de 2024, por Cardoso de Castro

Uma tese de Heidegger, aparentemente negligenciada atualmente, aprofunda o abismo que separa os dois modos ou níveis de temporalidade. Em sua forma lábil ou evanescente, o tempo derivado é ilimitado. O infinito e a inautenticidade andam juntos. O finito, por outro lado, é o tempo da temporalidade original. Esse ser-finito ou finitude não resulta de nenhum início ou fim do tempo ou de nosso próprio tempo. O finito é, antes de tudo, aquilo que participa de alguma forma do nada. Já sabemos que o nada é, para Heidegger, o segredo do ser. Mas ainda não sabemos que, desse nada, a morte é como o baú ou o caixão (scrinium em latim — der Schrein em alemão). Consequentemente, a finitude do tempo não deve ser buscada em uma forma particular de sua conclusão, mas, ao contrário, na fulguração perpétua de sua gênese. Longe de estar no fim do tempo, a morte — e somente a morte — abriga o poder nadificador do qual o tempo inicialmente procede. A morte não vem até nós a partir do tempo; é o tempo que vem até nós a partir da morte. As pessoas não são mortais porque são temporais, elas são temporais porque são mortais, ou melhor, porque são os mortais. O que é essa estranha morte que está tanto à nossa frente quanto atrás de nós e que sempre nos acompanha?

Não é a morte que geralmente é concebida na fatalidade de sua realidade futura ou na iminência de sua possibilidade presente. Morrer, nesse sentido, não é ter que morrer um dia, nem é poder morrer a qualquer hora do dia. O poder-morrer e o dever-morrer são, de fato, da mesma fibra. A possibilidade, de fato, se reduz à eventualidade, é a sombra lançada como por de atrás de si mesma pela fatalidade, a consequência recorrente ou o choque em retrocesso de um fim de vida que é sempre possível porque é totalmente certo em seu tempo e totalmente indeterminado em suas circunstâncias. A fatalidade é empírica, mas a possibilidade que dela procede não é menos.

Temos que inverter essa relação, temos que desjuntar a possibilidade da eventualidade, temos que inventar outra morte e outra certeza da morte, ambas apodícticas, ambas a priori. Surge outra figura de possibilidade que não deixa de ter afinidade com o que foi dito anteriormente sobre o possível. Morrer, de fato, ainda significa poder morrer. Mas este poder, agora investido de uma significação “ontológica” ou “transcendental”, agora precede o evento ou fato da morte. A morte se torna dupla. Da morte, com efeito, somente a morte nos dá o sentido ou a verdade, a compreensão ou a capacidade. O poder de morrer não prefigura a realidade da morte. Ele apenas nos dá sua inteligência e poder. Diz-nos o que está em causa ou o que está em jogo na morte efetiva. É assim que a morte instrui o tempo. É assim que ela instrui os mortais.

Por mais essencial que essa instrução possa ser, ela não autoriza nenhuma dedução. Da possibilidade da morte não descendemos à sua realidade, da sua realidade não ascendemos à sua possibilidade. Abrupto ou imprevisível, o fato da morte retém toda a sua contingência: ele não tira nem acrescenta nada ao morrer ou ao poder morrer que está no próprio princípio do ser-aí. Os homens não sabem, a partir de um conhecimento a priori ou necessário, que são mortais, mas sempre souberam, a partir de um conhecimento nunca adquirido, sobre a morte. Na ausência desse conhecimento, como poderiam sequer ouvir a palavra morte? Em virtude desse entendimento, deve-se dizer que os homens, mesmo que não precisassem ou não pudessem morrer, continuariam sendo os mortais que são: a morte, com efeito, sempre os contem ou os compreende.

Ser, em essência, significa poder-ser. Poder ser, em essência, significa poder não ser, poder não mais ser aí. A morte não é um fenômeno vital, a morte é um fenômeno existencial: a morte é tanto mais interior à existência quanto mais exterior à vida. Morrer e perecer — não se sobrepõem mais. Somente o homem morre, os animais são incapazes de morrer, os animais perecem. Os seres humanos não morrem por causa de sua animalidade, mas apesar dela. E, paradoxalmente, eles morrem desde que não morrem. Quando a morte aparece, ela desaparece: uma morte persegue a outra. No exato momento de sua morte, os seres humanos perdem sua mortalidade e também sua humanidade. Eles não são mais mortais, tornam-se não-mortais ou imortais. Em seu comentário sobre um hino de Hölderlin  , Heidegger escreve: “Enquanto a morte vem, ela desaparece. É na vida que os mortais morrem de morte. Na morte, os mortais se tornam imortais”.

Finito é o tempo que procede da morte. A procissão do tempo a partir da morte nos dá uma melhor compreensão da verdadeira relação entre o tempo e o ser pensante dos mortais: uma relação de identidade e não apenas de afinidade ou intimidade, uma relação cujo significado também deve ser invertido. De fato, a espiritualidade tradicional do tempo deve ser referida à temporalidade oculta do espírito: a primeira mascara e revela a segunda. O pensamento não pensa no tempo, o pensamento não pensa o tempo. Ou melhor, só pensa o tempo no tempo porque o tempo sempre o habitou e o solicitou: o pensamento é, portanto, o pensamento do tempo, assim como é o pensamento do ser… Aqui, novamente, a oposição Heidegger-Hegel   é instrutiva. Contra Hegel  , Heidegger escreve: “Espírito” não cai primeiro no tempo, mas existe como a temporalização original da temporalidade [ [SZ  :§82>ET82] ]. A existência heideggeriana   deve ser substituída pelo espírito hegeliano. A queda do espírito, que produz o tempo ao cair no tempo, deve ser contrastada com a queda de um tempo em outro tempo. Nem o “espírito”, nem o “tempo”, nem a “queda” são aqui originalmente pensados como existência, como temporalização e como decadência. A partir desse ponto, entendemos a dura e agradável fórmula de Heidegger: “De Hegel  , nada a esperar, nada a aprender sobre o tema da temporalidade” [GA21  ].


Ver online : Henri Birault


BIRAULT, Henri. Heidegger et l’expérience de la pensée. Paris: Gallimard, 1978