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Arendt (LM:190-191) – dois em um
terça-feira 2 de março de 2021
Abranches, Almeida & Martins
Até o próprio Sócrates , tão apaixonado pela praça pública, tem que voltar para casa, onde estará só, para encontrar o outro indivíduo.
Chamei a atenção para a passagem do Hípias Maior, em sua absoluta simplicidade, porque ela oferece uma metáfora que pode ajudar a simplificar — sob o risco de simplificar em demasia—assuntos difíceis, e que, portanto, sempre correm o risco de serem demasiadamente complicados. Épocas posteriores deram ao sujeito que espera Sócrates em casa o nome de “consciência moral”. Perante o tribunal, para adotar a linguagem kantiana, temos que comparecer e explicar-nos. E escolhi a passagem de Ricardo III porque Shakespeare, embora use a palavra “consciência moral”, não a usa aqui no sentido costumeiro. Muito tempo se passou antes que a língua separasse a palavra “consciência” (consciousness) da “consciência moral” (conscience); e em algumas línguas, como o francês, essa separação nunca foi feita. A consciência moral, tal como a entendemos em assuntos morais ou legais, está, supostamente, sempre presente em nós, assim como a mera consciência. E essa consciência moral supostamente nos diz o que fazer e do que se arrepender; antes de se tornar o lumen naturale, ou a razão prática de Kant , ela era a voz de Deus.
Ao contrário dessa consciência sempre presente, o sujeito de quem Sócrates fala foi deixado em casa; ele o teme, do mesmo modo como os assassinos de, Ricardo III temem a consciência moral — como algo ausente. Aqui a consciência moral aparece como um re-pensar despertada ou por um crime, no caso do próprio Ricardo, ou por opiniões não submetidas a exame, como no caso de Sócrates . Ela pode também ser o medo antecipado de tais atos de re-pensar, como no caso dos assassinos contratados de Ricardo. Essa consciência moral, diferentemente da voz de Deus dentro de nós ou do lumen naturale, não oferece nenhuma prescrição positiva (mesmo o daimon, a voz divina ouvida por Sócrates , só lhe diz o que não fazer); nas palavras de Shakespeare, ela “deixa um homem repleto de embaraços”. O que faz um homem temê-la é a antecipação da presença de uma testemunha que o aguarda apenas se e quando ele voltar para casa. O assassino de Shakespeare diz: “todo homem que pretende viver bem se esforça por… viver sem ela”. Isso é fácil de conseguir, pois tudo o que ele tem a fazer é nunca iniciar o diálogo isolado e sem som a que chamamos de “pensar”, nunca voltar para casa e examinar as coisas. Não se trata aqui de perversidade ou bondade, como também não se trata de inteligência ou estupidez. Uma pessoa que não conhece essa interação silenciosa (na qual examinamos o que dizemos e fazemos) não se importa em contradizer-se, e isso significa que ela jamais quererá ou poderá prestar contas do que faz ou diz; nem se importará em cometer um crime, já que pode estar certa de esquecê-lo no momento seguinte. As pessoas más — não obstante a opinião em contrário de Aristóteles —não são “cheias de remorsos”.
[ARENDT , Hannah. A Vida do Espírito. Tr. Antônio Abranches e Cesar Augusto R. de Almeida e Helena Martins. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, p. 142-143]
Original
Even Socrates , so much in love with the marketplace, has to go home, where he will be alone, in solitude, in order to meet the other fellow.
I have drawn attention to the passage in Hippias Major in its stark simplicity because it provides a metaphor that can help simplify—at the risk of over-simplification—matters that are difficult and therefore always in danger of over-complication. Later times have given the fellow who awaits Socrates in his home the name of “conscience.” Before its tribunal, to adopt Kantian language, we have to appear and give account of ourselves. And I chose the passage in Richard III, because Shakespeare, though he uses the word “conscience,” does not use it here in the accustomed way. It took language a long time to separate the word “consciousness” from “conscience,” and in some languages, for instance, in French, such a separation never was made. Conscience, as we understand it in moral or legal matters, is supposedly always present within us, just like consciousness. And this conscience is also supposed to tell us what to do and what to repent; before it became the lumen naturale or Kant ’s practical reason, it was the voice of God.
Unlike this ever-present conscience, the fellow Socrates is talking about has been left at home; he fears him, as the murderers in Richard III fear conscience—as something that is absent. Here conscience appears as an after-thought, roused either by a crime, as in Richard’s own case, or by unexamined opinions, as in the case of Socrates . Or it may be just the anticipated fear of such after-thoughts, as with Richard’s hired murderers. This conscience, unlike the voice of God within us or the lumen naturale, gives no positive prescriptions (even the Socratic daimon, his divine voice, only tells him what not to do); in Shakespeare’s words “it fills a man full of obstacles.” What causes a man to fear it is the anticipation of the presence of a witness who awaits him only if and when he goes home. Shakespeare’s murderer says: “Every man that means to live well endeavors…to live without it,” and success in that comes easy because all he has to do is never start the soundless solitary dialogue we call “thinking,” never go home and examine things. This is not a matter of wickedness or goodness, as it is not a matter of intelligence or stupidity. A person who does not know that silent intercourse (in which we examine what we say and what we do) will not mind contradicting himself, and this means he will never be either able or willing to account for what he says or does; nor will he mind committing any crime, since he can count on its being forgotten the next moment. Bad people—Aristotle to the contrary notwithstanding—are not “full of regrets.”
ARENDT , H. The Life of the Mind: the Groundbreaking Investigation on How We Think. Boston: Houghton Mifflin Harcourt, 1981.
Ver online : Philo-Sophia