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Scheler (GW10) – Ordo amoris

segunda-feira 8 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

Encontro-me num mundo incomensurável de objectos sensíveis e espirituais que põem em movimento incessante o meu coração e as minhas paixões. Sei que tanto os objectos que chego a conhecer pela percepção e pelo pensamento como tudo o que quero, escolho, faço, empreendo e realizo, dependem do jogo deste movimento do meu coração. Daqui se segue, para mim, que toda a espécie de autenticidade, de falsidade e de ilusão da minha vida e dos meus impulsos depende de se existe uma ordem objectivamente justa das incitações do meu amor e do meu ódio, da minha inclinação e aversão, do meu múltiplo interesse   pelas coisas deste mundo, e se me é possível imprimir no ânimo este ordo amoris.

Ao indagar, na sua essência mais íntima, um indivíduo, uma época histórica, uma família, um povo, uma nação ou quaisquer outras unidades histórico-sociais, conhecê-la-ei e compreendê-la-ei então com a máxima profundidade, se tiver chegado a conhecer o sistema, sempre de alguma forma articulado, das suas valorações efectivas e da sua preferência axiológica. Chamo a este sistema o ethos   [1] do sujeito. Mas o núcleo mais fundamental deste ethos é a ordem do amor e do ódio, a forma estrutural das paixões dominantes e prevalecentes e, antes de mais, a forma estrutural num estrato que se tornou exemplar. A mundividência, bem como os actos e as ações do sujeito, são sempre regidos mediante tal sistema.

O conceito de um ordo amoris tem assim um duplo significado: um significado normativo e um significado apenas fáctico e descritivo. Tal significado é normativo, mas não no sentido de que a própria ordenação seja um complexo de normas. Em semelhante caso, ela só poderia ser estabelecida por alguma vontade — ou de um homem ou de Deus —, mas não poderia conhecer-se de um modo evidente. Existe decerto o conhecimento da ordem de precedência de todos os títulos possíveis que as coisas, para serem amadas, têm segundo o seu valor intrínseco e peculiar. E o problema central de toda a ética. E o ponto supremo a que o homem pode aspirar seria, na medida do possível, amar as coisas como Deus [2]] as ama, afirmar com discernimento no próprio acto de amor a coincidência do acto divino e do acto humano num só e mesmo ponto do mundo dos valores. Por conseguinte, o ordo amoris objetivamente justo só se transforma em norma quando, como conhecido, se encontra referido ao querer do homem e a ele oferecido por uma vontade [3].

Mas o conceito do ordo amoris de valor fundamental é também descritivo. É aqui, por detrás dos factos inicialmente confusos das ações humanas moralmente relevantes, dos fenómenos de expressão, das volições, dos costumes, dos usos e das obras espirituais, o meio de encontrar a estrutura mais simples dos fins mais elementares que o núcleo da pessoa, ao agir, a si propõe — a fórmula moral   básica, por assim dizer, segundo a qual moralmente existe e vive o sujeito. Portanto, tudo o que num homem ou num grupo podemos conhecer de moralmente relevante se deve reduzir — sempre mediatamente — a uma forma particular de organização dos seus actos de amor e de ódio, das suas capacidades de amar e de odiar: ao ordo amoris que os domina, que se expressa em todos os seus movimentos.


Ver online : Max Scheler


Max Scheler - Ordo Amoris


[1Sobre o ethos, cf. também O Formalismo na ética, Secção V, 6; e ainda o ensaio Modelos e chefes, Seção II.

[2A ideia do ordo amoris objetivo não depende, pois, da proposição acerca da existência de Deus. [Acerca da “validade autónoma das doutrinas fundamentais da ética relativamente a toda a investigação filosófica da religião e do ethos religioso”, ver a conclusão de O Formalismo.

[3Sobre “valor” e “nonna”, cf. O Formalismo, Seção IV, 2.