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Ricoeur (1991:151-152) – identidade em Locke

sexta-feira 2 de fevereiro de 2024, por Cardoso de Castro

Lucy Moreira Cesar

1. Os filósofos de língua inglesa e de cultura analítica aprenderam em primeiro lugar em Locke e em Hume   que sem o fio condutor da distinção entre dois modelos de identidade e sem o auxílio da mediação narrativa, a questão da identidade pessoal perde-se nos arcanos de dificuldades e de paradoxos paralisantes.

Do primeiro, a tradição ulterior reteve a equação entre identidade pessoal e memória. Mas é preciso ver ao preço de que inconsistência na argumentação e de que improbabilidade na ordem das consequências essa equação foi paga. Em primeiro lugar, inconsequência na argumentação: no começo do famoso capítulo XXVII do Ensaio filosófico concernente ao entendimento humano [1] (2.a ed., 1964), intitulado “Identidade e diversidade”, Locke introduz um conceito de identidade que parece escapar à nossa alternativa da mesmidade e da ipseidade; após ter dito que a identidade resulta de uma comparação, Locke introduz a ideia singular da identidade de uma coisa consigo mesma (palavra por palavra: de mesmidade consigo mesmo, sameness with itself); é, com efeito, comparando uma coisa consigo mesma em tempos diferentes que formamos as ideias de identidade e de diversidade; “quando perguntamos se uma coisa é a mesma (same) ou não, é sempre fazendo referência a alguma coisa que existiu em tal tempo e tal lugar, do qual estava certo que nesse momento essa coisa era idêntica a si mesma (the same with itself). Essa definição parece acumular os caracteres da mesmidade, em virtude da operação de comparação, e os da ipseidade, em virtude do que foi coincidência instantânea, mantida através do tempo, de uma coisa consigo mesma. Mas a série da análise decompõe as duas valências da identidade. Na primeira série de exemplos — o navio do qual mudamos todas as peças, o carvalho do qual acompanhamos o crescimento de bolota a árvore, o animal e mesmo o homem do qual seguimos o desenvolvimento do nascimento à morte — é a mesmidade que prevalece; o elemento comum a todos esses exemplos é a permanência da organização, a qual, é verdade, não pressupõe, segundo Locke, nenhum substancialismo. Mas, no momento de chegar à identidade pessoal que Locke não confunde com a de um homem, é à reflexão instantânea que ele destina a “mesmidade consigo mesmo” alegada pela definição geral. Resta somente desenvolver o privilégio da reflexão do instante à duração; é suficiente considerar a memória [151] como a expansão retrospectiva da reflexão tão longe quanto ela pode se estender no passado; em favor dessa mutação da reflexão na memória, a “mesmidade consigo mesmo” pode estender-se através do tempo. Dessa maneira, Locke acreditou poder introduzir uma cesura no curso de sua análise sem ter de abandonar seu conceito geral de “mesmidade (de uma coisa) consigo mesma”. E, no entanto, a curva da reflexão e da memória marcava de fato uma desordem conceitual onde a ipseidade substituia silenciosamente a mesmidade.

Mas não foi quanto à coerência do argumento que Locke suscitou maior perplexidade: a tradição creditou-lhe a invenção de um critério de identidade, a saber, a identidade psíquica, a que poderemos daqui em diante opor o critério de identidade corporal, do qual realçava de fato a primeira série de exemplos em que prevalecia a permanência de uma organização observável de fora. Uma discussão sobre os critérios da identidade ocupará de hoje em diante o proscênio, suscitando discursos opostos e igualmente plausíveis em favor de um ou de outro. Assim, a Locke e seus partidários oporemos regularmente as aporias de uma identidade suspensa apenas pelo testemunho da memória; aporias psicológicas concernentes aos limites, as intermitências (durante o sono, por exemplo), as perdas da memória, mas também as aporias mais propriamente ontológicas: antes de dizer que a pessoa existe e por isso é que ela se lembra, não seria mais plausível — pergunta J. Butler   [2] — destinar a continuidade dá memória à existência contínua de uma alma-substância? Sem tê-lo previsto, Locke realçava o caráter aporético da própria questão da identidade. Testemunhando mais que tudo os paradoxos que ele assumia sem franzir a sobrancelha mas que seus sucessores transformaram em provas de indeterminação: seja o caso de um príncipe do qual transplantamos a memória para o corpo de um sapateiro remendão; este se torna o príncipe que ele se lembra ter sido ou permanece o sapateiro remendão que os outros homens continuam a observar? Locke, coerente consigo mesmo, decide em favor da primeira solução. Mas as leituras modernas, mais sensíveis à colisão entre dois critérios opostos de identidade, concluirão pela indeterminação do caso. Dessa maneira, a era dos puzzling cases estava aberta, a despeito da certeza de Locke. Voltaremos a esse assunto mais adiante [3].

Original

1. Que, sans le fil conducteur de la distinction entre deux modèles d’identité et sans le secours de la médiation narrative, la question de l’identité personnelle se perde dans les arcanes de difficultés et de paradoxes paralysants, les philosophes de langue anglaise et de culture analytique l’ont appris d’abord chez Locke et chez Hume.

Du premier, la tradition   ultérieure a retenu l’équation entre identité personnelle et mémoire. Mais il faut voir au prix de quelle inconsistance dans l’argumentation et de quelle invraisemblance dans l’ordre des conséquences cette équation a été payée. Inconséquence dans l’argumentation, d’abord : au début du fameux chapitre XXVII de l’Essai philosophique concernant l’entendement humain (2e éd., 1694), intitulé « Identité et diversité », Locke introduit un concept d’identité qui paraît échapper à notre alternative de la mêmeté et de l’ipséité ; après avoir dit que l’identité résulte d’une comparaison, Locke introduit l’idée singulière de l’identité d’une chose à elle-même (mot à mot : de mêmeté avec elle-même, sameness with itself) ; c’est en effet en comparant une chose avec elle-même dans des temps différents que nous formons les idées d’identité et de diversité ; « quand nous demandons si une chose est la même [same] ou non, il est toujours fait référence à quelque chose qui a existé en tel temps et tel lieu, dont il était certain qu’à ce moment cette chose était identique à elle-même [the same with itself] ». Cette définition paraît cumuler les caractères de la mêmeté en vertu de l’opération de comparaison, et ceux de l’ipséité en vertu de ce qui fut coïncidence instantanée, maintenue à travers le temps, d’une chose avec elle-même. Mais la suite de l’analyse décompose les deux valences de l’identité. Dans la première série d’exemples – le navire dont on a changé toutes les pièces, le chêne dont on accompagne la croissance du gland à l’arbre, l’animal et même l’homme dont on suit le développement de la naissance à la mort –, c’est la mêmeté qui prévaut ; l’élément commun à tous ces exemples, c’est la permanence de l’organisation, laquelle, il est vrai, n’engage, selon Locke, aucun substantialisme. Mais, au moment d’en venir à l’identité personnelle que Locke ne confond pas avec celle d’un homme, c’est à la réflexion instantanée qu’il assigne la « mêmeté avec soi-même » alléguée par la définition générale. Reste seulement à étendre le privilège de la réflexion de l’instant à la durée ; il suffit de considérer la mémoire comme l’expansion rétrospective de la réflexion aussi loin qu’elle peut s’étendre dans le passé ; à la faveur de cette mutation de la réflexion en mémoire, la « mêmeté avec soi-même » peut être dite s’étendre à travers le temps. Ainsi Locke a-t-il cru pouvoir introduire une césure dans le cours de son analyse sans avoir à abandonner son concept général de « mêmeté [d’une chose] avec elle-même ». Et pourtant, le tournant de la réflexion et de la mémoire marquait en fait un renversement conceptuel où l’ipséité se substituait silencieusement à la mêmeté.

Mais ce n’est pas au niveau de la cohérence de l’argument que Locke a suscité la perplexité majeure : la tradition l’a crédité de l’invention d’un critère d’identité, à savoir l’identité psychique, à quoi l’on pourra désormais opposer le critère d’identité corporelle, duquel relevait en fait la première série d’exemples où prévalait la permanence d’une organisation observable du dehors. Une discussion sur les critères de l’identité occupera désormais l’avant-scène, suscitant des plaidoyers opposés et également plausibles en faveur de l’un ou de l’autre. Ainsi, à Locke et à ses partisans, on opposera régulièrement les apories d’une identité suspendue au seul témoignage de la mémoire ; apories psychologiques concernant les limites, les intermittences (durant le sommeil par exemple), les défaillances de la mémoire, mais aussi apories plus proprement ontologiques : plutôt que de dire que la personne existe pour autant qu’elle se souvient, n’est-il pas plus plausible, demande J. Butler, d’assigner la continuité de la mémoire à l’existence continue d’une âme-substance ? Sans l’avoir prévu, Locke révélait le caractère aporétique de la question même de l’identité. En témoignent plus que tout les paradoxes qu’il assumait sans sourciller, mais que ses successeurs ont transformés en épreuves d’indécidabilité : soit le cas d’un prince dont on transplante la mémoire dans le corps d’un savetier ; celui-ci devient-il le prince qu’il se souvient avoir été, ou reste-t-il le savetier que les autres hommes continuent d’observer ? Locke, cohérent avec lui-même, tranche en faveur de la première solution. Mais des lecteurs modernes, plus sensibles à la collision entre deux critères opposés d’identité, concluront à l’indécidabilité du cas. De cette façon, l’ère des puzzling cases était ouverte, en dépit de l’assurance de Locke. On y reviendra plus loin.


Ver online : Paul Ricoeur


RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. Tr. Lucy Moreira Cesar. Campinas: Papirus, 1991

RICOEUR, Paul. Soi-même comme un autre. Paris: Editions du Seuil, 1990.


[1Essai philosophique concernant fentendement humain, trad. fr. de P. Coste, Paris, Vrin, 1972.

[2J. Butler, “Of personal identity”, The analogy of religion (1736) retomado em J. Perry (ed.), Personal identity, University of California Press, 1975, pp. 99-105.

[3E não em Locke mas em seus sucessores que a situação criada pela hipótese da transplantação de uma mesma alma para um outro corpo começou a parecer mais indeterminada do que simplesmente paradoxal, isto é, contrária ao senso comum. Pois, como a memória do príncipe poderia não afetar o corpo do sapateiro no plano da voz, dos gestos, das posturas? E como situar a expressão do caráter habitual do sapateiro em relação à da memória do príncipe? O que se tornou problemático após Locke e não era para esse último foi a possibilidade de distinguir entre dois critérios de identidade: a identidade dita psíquica e a identidade dita corporal, como se a expressão da memória não fosse um fenômeno corporal. De fato, o vício inerente ao paradoxo de Locke, além da circularidade eventual do argumento, é uma descrição imperfeita da situação criada pela transplantação imaginária.