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Interpretação e Ideologias

Ricoeur (1977) – Mundo do Texto

Du texte à l’action. Essais d’herméneutique II.

quinta-feira 22 de junho de 2023, por Cardoso de Castro

O traço que colocamos sob este título vai levar-nos ao mesmo tempo a ultrapassar as posições da hermenêutica romântica, que ainda são as de Dilthey  , mas também às antípodas do estruturalismo, que recuso, aqui, como o simples contrário do romantismo.

Japiassu

Estamos lembrados de que a hermenêutica romântica enfatizava a expressão da genialidade. Igualar-se a essa genialidade, tornar-se contemporâneo dela, era a tarefa da hermenêutica. Dilthey  , próximo ainda, neste sentido, da hermenêutica romântica, fundava seu conceito de interpretação sobre o de "compreensão", vale dizer, sobre a captação de uma vida estranha exprimindo-se através das objetivações da escrita. Donde o caráter historicizante e psicologizante da hermenêutica romântica e diltheyniana. Esta via não nos é mais acessível, a partir do momento em que levamos a sério o distanciamento, pela escrita, e a objetivação, pela estrutura da obra. Significaria isto, porém, que ao renunciar a apreender a alma de um autor, limitamo-nos a reconstituir a estrutura de uma obra?

A resposta a essa questão afasta-nos tanto do estruturalismo quanto do romantismo. A tarefa hermenêutica fundamental escapa à alternativa da genialidade ou da estrutura. Vinculo-a à noção do "mundo do texto".

Essa noção prolonga o que acima chamamos de a referência ou denotação do discurso: em toda proposição podemos distinguir, com Frege, seu sentido e sua referência [1]. Seu sentido é o objeto real que visa; este sentido é puramente imanente ao discurso. Sua referência é seu valor de verdade, sua pretensão de atingir a realidade. Por esse caráter, o discurso se opõe à língua, que não possui relação com a realidade, as palavras remetendo a outras palavras na ronda infindável do dicionário. Somente o discurso, dizíamos, visa às coisas, aplica-se à realidade, exprime o mundo.

A questão nova que se coloca é a seguinte: o que ocorre com a referência quando o discurso se torna texto? É aqui que a escrita, mas, sobretudo, a estrutura da obra, alteram a referência, a ponto de torná-la inteiramente problemática. No discurso oral, o problema se resolve, enfim, na função ostensiva do discurso. Em outros termos, a referência se resolve no poder de mostrar uma realidade comum aos interlocutores; ou, se não podemos mostrar a coisa de que falamos, pelo menos podemos situá-la relativamente à única rede   espaço-temporal   à qual também pertencem os interlocutores. Finalmente, é o "aqui" e o "agora", determinados pela situação do discurso, que conferem a referência última a todo discurso. Com a escrita, as coisas já começam a mudar. Não há mais, com efeito, situação comum ao escritor e ao leitor. Ao mesmo tempo, as condições concretas do ato de mostrar não existem mais. Sem dúvida, é essa abolição do caráter mostrativo ou ostensivo da referência que torna possível o fenômeno que denominamos de "literatura", onde toda referência à realidade dada pode ser abolida. Contudo, é essencialmente com o aparecimento de certos gêneros literários, geralmente ligados à escrita, mas não necessariamente tributários desta, que essa abolição da referência ao mundo dado é levada até suas mais extremas condições. Este é, me parece, o papel da maior parte de nossa literatura: destruir o mundo. Isto é uma verdade da literatura de ficção — conto, mito, romance, teatro   —, bem como de toda literatura denominada de poética, onde a linguagem parece glorificada em si mesma, em detrimento da função referencial do discurso ordinário.

No entanto, não há discurso de tal forma fictício que não vá ao encontro da realidade, embora em outro nível, mais fundamental que aquele que atinge o discurso descritivo, constatativo, didático, que chamamos de linguagem ordinária. Minha tese consiste em dizer que a abolição de uma referência de primeiro nível, abolição operada pela ficção e pela poesia, é a condição de possibilidade para que seja liberada uma referência de segundo nível, que atinge o mundo, não mais somente no plano dos objetos manipuláveis, mas no plano que Husserl   designava pela expressão de Lebenswelt  , e Heidegger pela de "ser-no-mundo".

É essa dimensão referencial absolutamente original da obra de ficção e de poesia que, a meu ver, coloca o problema hermenêutico mais fundamental. Se não podemos definir a hermenêutica pela procura de um outro e de suas intenções psicológicas que se dissimulam por detrás do texto; e se não pretendemos reduzir a interpretação à desmontagem das estruturas, o que permanece para ser interpretado? Responderei: interpretar é explicitar o tipo de ser-no-mundo manifestado diante do texto.

Vamos ao encontro, aqui, de uma sugestão de Heidegger dizendo respeito à noção de Verstehen  . Estamos lembrados de que, em Sein und Zeit  , a teoria da "compreensão" não está mais vinculada à compreensão de outrem, mas torna-se uma estrutura do ser-no-mundo. Mais precisamente, é uma estrutura cujo exame vem após ao da Befindlichkeit  ; o momento do "compreender" responde dialeticamente ao ser em situação, como sendo a projeção dos possíveis mais adequados ao cerne mesmo das situações onde nos encontramos. Dessa análise, retenho a ideia de "projeção dos possíveis mais próximos" para aplicá-la à teoria do texto. De fato, o que deve ser interpretado, num texto, é uma proposição de mundo, de um mundo tal como posso habitá-lo para nele projetar um de meus possíveis mais próprios. É o que chamo de o mundo do texto, o mundo próprio a este texto único.

O mundo do texto de que falamos não é, pois, o da linguagem quotidiana. Neste sentido, ele constitui uma nova espécie de distanciamento que se poderia dizer entre o real e si mesmo. Trata-se do distanciamento que a ficção introduz em nossa apreensão do real. Como vimos, um relato, um conto ou um poema não existem sem referente. Mas esse referente estabelece uma ruptura com o da linguagem quotidiana. Pela ficção, pela poesia, abrem-se novas possibilidades de ser-no-mundo na realidade quotidiana. Ficção e poesia visam ao ser, mas não mais sob o modo do ser-dado, mas sob a maneira do poder-ser. Sendo assim, a realidade quotidiana se metamorfoseia em favor daquilo que poderíamos chamar de variações imaginativas que a literatura opera sobre o real.

Conforme já mostrei em outra obra, tomando o exemplo da linguagem metafórica [2], a ficção é o caminho privilegiado da descrição da realidade, e a linguagem poética é aquela que, por excelência, opera o que Aristóteles  , refletindo sobre a tragédia, chamava de a mimesis   da realidade. A tragédia, com efeito, só imita a realidade, porque a recria através de um mythos  , de uma "fábula", que atinge sua mais profunda essência.

É este o terceiro tipo de distanciamento que a experiência hermenêutica deve incorporar.

Original

Le trait que nous avons placé sous le titre de « monde du texte » va nous conduire plus loin encore des positions de l’herméneutique romantique, qui sont encore celles de Dilthey, mais aussi aux antipodes du structuralisme, que je récuse ici comme le simple contraire du romantisme.

On se rappelle que l’herméneutique romantique mettait l’accent sur l’expression de la génialité ; s’égaler à cette génialité, s’en rendre contemporain, telle était la tâche de l’herméneutique ; Dilthey, proche encore en ce sens de l’herméneutique romantique, fondait son concept d’interprétation sur celui de « compréhension », c’est-à-dire sur la saisie d’une vie étrangère s’exprimant à travers les objectivations de l’écriture. De là le caractère psychologisant et historicisant de l’herméneutique romantique et diltheyenne. Cette voie ne nous est plus accessible, dès lors que nous prenons au sérieux la distanciation par l’écriture et l’objectivation par la structure de l’œuvre. Mais est-ce à dire que, renonçant à saisir l’âme d’un auteur, nous nous bornions à reconstruire la structure d’une œuvre ?

La réponse à cette question nous éloigne autant du structuralisme que du romantisme ; la tâche herméneutique principale échappe à l’alternative de la génialité ou de la structure ; je la relie à la notion de « monde du texte ».

Cette notion prolonge ce que nous avons appelé plus haut la référence ou dénotation du discours : en toute proposition on peut distinguer, avec Frege, son sens et sa référence [3]. Son sens, c’est l’objet idéal qu’elle vise ; ce sens est purement immanent au discours. Sa référence, c’est sa valeur de vérité, sa prétention à atteindre la réalité. Par ce caractère, le discours s’oppose à la langue qui n’a pas de rapport avec la réalité, les mots renvoyant à d’autres mots dans la ronde sans fin du dictionnaire ; seul, disions-nous, le discours vise les choses, s’applique à la réalité, exprime le monde.

La question nouvelle qui se pose est celle-ci : que devient la référence lorsque le discours devient texte ? C’est ici que l’écriture d’abord, mais surtout la structure de l’œuvre altèrent la référence au point de la rendre entièrement problématique. Dans le discours oral, le problème se résout finalement dans la fonction ostensive du discours ; autrement dit, la référence se résout dans le pouvoir de montrer une réalité commune aux interlocuteurs ; ou, si on ne peut montrer la chose dont on parle, du moins peut-on la situer par rapport à l’unique réseau spatio-temporel auquel appartiennent aussi les interlocuteurs ; c’est finalement le « ici » et le « maintenant », déterminés par la situation   du discours, qui fournissent la référence ultime à tout discours ; avec l’écriture, les choses commencent déjà à changer ; il n’y a plus, en effet, de situation commune à l’écrivain et au lecteur ; du même coup, les conditions concrètes de l’acte de montrer n’existent plus. C’est sans doute cette abolition du caractère monstratif ou ostensif de la référence qui rend possible le phénomène que nous appelons « littérature », où toute référence à la réalité donnée peut être abolie. Mais c’est essentiellement avec l’apparition de certains genres littéraires, généralement liés à l’écriture, mais non pas nécessairement tributaires de l’écriture, que cette abolition de la référence au monde donné est conduite jusqu’à ses conditions les plus extrêmes. C’est, semble-t-il, le rôle de la plus grande partie de notre littérature de détruire le monde. Cela est vrai de la littérature de fiction – conte, nouvelle, roman, théâtre –, mais aussi de toute la littérature qu’on peut dire poétique, où le langage semble glorifié pour lui-même aux dépens de la fonction référentielle du discours ordinaire.

Et pourtant, il n’est pas de discours tellement fictif qu’il ne rejoigne la réalité, mais à un autre niveau, plus fondamental que celui qu’atteint le discours descriptif, constatif, didactique, que nous appelons langage ordinaire. Ma thèse est ici que l’abolition d’une référence de premier rang, abolition opérée par la fiction et par la poésie, est la condition de possibilité pour que soit libérée une référence de second rang, qui atteint le monde non plus seulement au niveau des objets manipulables, mais au niveau que Husserl désignait par l’expression de Lebenswelt et Heidegger par celle d’être-au-monde.

C’est cette dimension référentielle absolument originale de l’œuvre de fiction et de poésie qui, à mon sens, pose le problème herméneutique le plus fondamental. Si nous ne pouvons plus définir l’herméneutique par la recherche d’un autrui et de ses intentions psychologiques qui se dissimulent derrière le texte, et si nous ne voulons pas réduire l’interprétation au démontage des structures, qu’est-ce qui reste à interpréter ? Je répondrai : interpréter, c’est expliciter la sorte d’être-au-monde déployé devant le texte.

Nous rejoignons ici une suggestion de Heidegger concernant la notion de Verstehen. On se rappelle que, dans Sein   und Zeit  , la théorie de la « compréhension » n’est plus liée à la compréhension d’autrui, mais devient une structure de l’être-au-monde ; plus précisément, c’est une structure dont l’examen vient après celui de la Befindlichkeit ; le moment du « comprendre » répond dialectiquement à l’être en situation, comme étant la projection des possibles les plus propres au cœur même des situations où nous nous trouvons. Je retiens de cette analyse l’idée de « projection des possibles les plus propres » pour l’appliquer à la théorie du texte. Ce qui est en effet à interpréter dans un texte, c’est une proposition de monde, d’un monde tel que je puisse l’habiter pour y projeter un de mes possibles les plus propres. C’est ce que j’appelle le monde du texte, le monde propre à ce texte unique.

Le monde du texte dont nous parlons n’est donc pas celui du langage quotidien ; en ce sens, il constitue une nouvelle sorte de distanciation qu’on pourrait dire du réel avec lui-même. C’est la distanciation que la fiction introduit dans notre appréhension de la réalité. Nous l’avons dit, un récit, un conte, un poème ne sont pas sans référent. Mais ce référent est en rupture avec celui du langage quotidien ; par la fiction, par la poésie, de nouvelles possibilités d’être-au-monde sont ouvertes dans la réalité quotidienne ; fiction et poésie visent l’être, non plus sous la modalité de l’être-donné, mais sous la modalité du pouvoir-être. Par là même, la réalité quotidienne est métamorphosée à la faveur de ce qu’on pourrait appeler les variations imaginatives que la littérature opère sur le réel.

J’ai montré ailleurs, sur l’exemple du langage métaphorique [4], que la fiction est le chemin privilégié de la redescription de la réalité et que le langage poétique est celui qui, par excellence, opère ce qu’Aristote, réfléchissant sur la tragédie, appelait la mimesis de la réalité ; la tragédie, en effet, n’imite la réalité que parce qu’elle la recrée par le moyen d’un muthos, d’une « fable », qui en atteint l’essence la plus profonde.

Telle est la troisième sorte de distanciation que l’expérience herméneutique doit incorporer.


Ver online : Paul Ricoeur


[1G. Frege, Écrits logiques et philosophiques, trad. fr., Paris, 1971, pp. 102s

[2P. Ricoeur, "La métaphore et le problème central de l’herméneutique", Revue Philosophique de Louvain, 70, 1972, pp. 93-112

[3G. Frege, Écrits logiques et philosophiques, trad. fr. de C. Imbert, Paris Éd. du Seuil, 1971, cf. notamment p. 102 sq. (A la suite de É. Benveniste, P. Ricœur traduit ici Bedeutung par référence, alors que C. Imbert a choisi dénotation. Cf. introduction, p. 15). [ NdE].

[4« La métaphore et le problème central de l’herméneutique », Revue philosophique de Louvain, 1972, n° 70, p. 93-112 ; voir aussi La Métaphore vive, Paris, Éd. du Seuil, 1975.