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A Simplicidade do Princípio

Paul Gilbert (SP:16-18) – a problemática de Maurice Blondel

Introdução

quarta-feira 5 de outubro de 2022, por Cardoso de Castro

A análise blondeliana se desenvolve pondo em evidência a potência da “vontade querente”, que tende para o cumprimento de seu desejo aberto indefinidamente, enquanto a “vontade querida” encarna esse élan na particularidade de nossas existências. A relação entre a vontade querente e a vontade querida é precisa: essa última alimenta-se daquela que lhe dá seu élan e da qual é a expressão e a correia de transmissão, sem nunca lhe esgotar a amplidão inteira.

A problemática de Blondel   pode ser comparada à de Heidegger. Seu Ação, de 1893, já que anterior a Ser e Tempo  , não conhece evidentemente a distinção entre existenciário e existencial, do ôntico e do ontológico. Mas o que é significado por esses termos não lhe é estranho. O dinamismo do Dasein   não é de todo diferente do dinamismo da “vontade querente” de Blondel, embora esse prefira um termo mais claramente transcendente e amável. A análise blondeliana se desenvolve pondo em evidência a potência da “vontade querente”, que tende para o cumprimento de seu desejo aberto indefinidamente, enquanto a “vontade querida” encarna esse élan na particularidade de nossas existências. A relação entre a vontade querente e a vontade querida é precisa: essa última alimenta-se daquela que lhe dá seu élan e da qual é a expressão e a correia de transmissão, sem nunca lhe esgotar a amplidão inteira. A vontade querente é exercida a cada etapa querida, mas de uma maneira particular, sem poder ser ali inteiramente cumprida. A inadequação entre a vontade querente e a vontade querida é verificada por meio de todas as nossas atividades. No entanto, reconhece-se uma ordem entre as formas queridas dessas atividades graças a uma análise que, indo de uma a outra, revela a amplitude da vontade querente que é progressivamente exercida e realizada de uma maneira sempre mais adequada. A posição da pura ação susceptível de atender inteiramente à vontade querente, isto é, da “opção”, é elaborada na série reta dos fenômenos assim preliminarmente ordenados.

No final de sua primeira obra, Blondel fala de uma “metafísica à segunda potência” [1]. Por essa expressão, indica um prolongamento possível da reflexão feita até lá. Essa metafísica à segunda potência “funda não somente o que uma primeira metafísica ainda toda subjetiva nos apresentava [16] erroneamente como a realidade mesma do ser, quando era uma simples vista do espírito ou um fenômeno especulativo, mas todo o determinismo da natureza, da vida e do pensamento” [2]. O domínio coberto por A Ação, a metafísica à primeira potência, parece assim encerrado na esfera da subjetividade. Mas na realidade não é assim. A Ação prende-se de maneira privilegiada ao movimento da vontade subjetiva para opôr-se à mentalidade dos “positivismo, fenomenismo, criticismo à maioria dos espíritos a rejeição de toda metafísica, ou, ao menos, uma profunda desconfiança a seu respeito” [3]. Para restaurar ante esses objetores a possibilidade da afirmação do absoluto, Blondel deve insistir sobre o papel da subjetividade na afirmação científica. Mas a meditação sobre as obras do sujeito não o limita aos problemas do “eu”. De fato, sua tese de 1893 desenvolve a aliança dos atos do espírito e do ente. Sua maneira de aduzir a afirmação do ser, como conclusão de sua tese, confirma essa perspectiva. Em Blondel, não há interesse   pelo sujeito separado de seu fundamento metafísico.

Daí deriva o plano de A Ação. Depois de ter mostrado a necessidade de pôr a questão do sentido da vida (1a parte) e a necessidade de encontrar uma resposta positiva (2a parte), Blondel analisa os domínios do saber e do agir humano (3a parte). Leva assim seu leitor a reconhecer nos diversos fenômenos do dinamismo do espírito expressões em que a vontade querida tende a igualar a amplitude da vontade querente.

O primeiro fenômeno do espírito é a atividade científica. Essa primazia é necessária, nós a fazemos nossa, nesta obra, porque a filosofia não pode realizar sua meditação sem analisar as possibilidades de suas expressões ao confrontá-las com as exigências contemporâneas dos discursos racionais. Uma vez analisadas as ciências, uma vez reconhecido que a exigência do sentido não é extinta por suas práticas metódicas, pode-se afirmar que elas não são a medida do ser, mas que o ser é a luz de seu sentido. As ciências são, assim, limitadas sem se menosprezar sua excelência. Sua fundação é assegurada por uma exigência que leva a ultrapassá-las. A Ação continua a seguir seu estudo dos fenômenos do espírito (e nossos prolegômenos vão seguir um traçado semelhante) tratando da liberdade pessoal, de seu engajamento na sociedade e em relação aos valores religiosos mais altos. A última figura dessa pesquisa blondeliana é constituída pela “opção” (4a parte). [17] O sentido de cada fenômeno analisado anteriormente é então afirmado reconhecendo a tensão que a todos atravessou e ultrapassou. “Tudo o que foi chamado dados sensíveis, verdades positivas, ciência subjetiva, crescimento orgânico, expansão social, concepções morais e metafísicas, certeza do único necessário, alternativa inevitável, opção mortífera ou vivificante, acabamento sobrenatural da ação, afirmação da existência real dos objetos do pensamento e das condições da prática, tudo não passa de fenômenos pelo mesmo título.” [4] Para concluir sua obra, Blondel sela todos esses fenômenos na afirmação positiva do princípio (5a parte), que falta ainda pensar por ele mesmo (o que farão os escritos blondelianos posteriores) e que transcende o ato de liberdade, implementando-o além dela mesma.

Segundo A Ação, a afirmação ontológica nasce do interior da análise dos fenômenos. Todos os fenômenos exercem e manifestam uma inadequação entre a vontade querente e o que lhe é possível concretamente realizar. No termo do percurso, e no caso da opção “positiva” (isto é, de uma adesão da liberdade ao indefinido que ela não pode encerrar em si mesma, mas que atrai a vontade querente), um olhar retrospectivo reconhece em cada fenômeno uma expressão provisória, mas já real, do infinito fundador. Os fenômenos analisados então não são mais entendidos como resultados de uma vontade que busca somente sua auto-adequação, porque sinalizam também um fundamento ao qual o espírito se sabe desde sempre votado, e ao qual quer ser ligado sempre em cada uma de suas operações.


Ver online : Paul Gilbert – A Simplicidade do Princípio


[1M. Blondel, L’Action, p. 464.

[2Id., pp. 464-465.

[3H. Bouillard, Blondel et le christianisme, p. 166.

[4M. Blondel, L’Action, p. 452.