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Patocka (1971/2021) – eu corporal e corpo-vivente [Leib]

segunda-feira 18 de dezembro de 2023, por Cardoso de Castro

É bem sabido que a certeza do eu foi, para Descartes  , certeza do ser e da essência. A dúvida hiperbólica conhece um limite intransponível na certeza do eu enquanto certeza da própria existência. Mesmo para a dúvida mais extrema, a existência do eu é um pressuposto. Esta existência não pode ser uma simples aparição, talvez enganosa, de um outro ser, mas aqui a aparição envolve a própria existência, é essencialmente existência-em-aparição, coisa que, para outros existentes, como, por exemplo, as coisas naturais, não tem de ser forçosamente o caso. Neste sentido, pode-se elevar a certeza do eu a princípio filosófico: ela é um pressuposto mesmo para a aparição daquilo que não é uma existência-em-aparição.

É natural, decerto, interpretar a pertença da existência própria à essência da aparição

1. como tese sobre a necessidade de um aparecer objetivo da essência própria,

2. como tese sobre o eu como fundamento absoluto e necessário da totalidade da aparição enquanto tal.

Ambas as teses são inviáveis, porém. A primeira é a de Descartes e da tradição cartesiana. O fato do aparecer para a existência é aqui interpretado como certeza acerca da objetividade sempre disponível para as determinações, interiormente também disponíveis, da essência própria. Que isto conduza a um beco sem saída, foi o que tentámos mostrar acima.

A segunda é a tese de Fichte   e a da tradição do idealismo transcendental   em geral: pretendeu-se aqui construir, a partir do eu puro, a transcendência, aquilo que se lhe contrapõe, coisa que sempre reconduziu, porém, ao postulado de uma atividade inconsciente que não se pode mostrar enquanto tal.

A questão é, agora, a seguinte: quando se pressupõe a existência, como um sum para si próprio claro, não se regressa com isso, necessariamente, a um cogito   que se capta a si próprio em original? Tentaremos responder o seguinte: a ultrapassagem do sum em direção à coisa aparecente não é mostrável fenomenalmente, não podemos trazê-la “diante de nós”. O que está aí fenomenalmente será, ao contrário, o fato importante de que não somos nós, mas antes o ser fenomenal que nos permite interpretar que possibilidades do nosso próprio ser estão aí para nós.

O sum não é nenhuma coisa, no sentido de que ele não pode nunca aparecer independentemente, mas apenas essencialmente em ligação com e no contexto de comportamentos relativos às coisas. Por isso, ele aparece sempre como um eu corporal [als ein Leibich], a cujos impulsos o corpo-vivente [Leib  ] [1] aparecente é capaz de obedecer, isto é, corresponde ao corpo-vivente, enquanto egóico, um apelo fenomenal, ele satisfaz ou tenta satisfazer uma exigência cousal aparecente que se abre diante de si (porquanto aquilo que há a executar se anuncia como um caráter “objetivo”, como qualquer coisa não satisfeita). Contextos de ação, ocasiões, utensílios que se me oferecem — tudo isso atrai-me ou repele-me, e esta atração e repulsão, que se efetuam no campo de aparição, é certamente satisfeita pelo meu corpo-vivente. Ao mesmo tempo, o corpo-vivente forma o centro não-dado de uma perspectiva que, nas suas exigências, para mim (que aí apareço corporal e perceptivamente, de um modo que não é nunca total nem susceptível de distanciamento) se volta e, com isso, por vez primeira me “desperta” e me provoca uma reação. Isto que está sempre presente, que corresponde ou pode satisfazer as exigências e solicitações das coisas, é o meu corpo-vivente. No entanto, eu não me apareço como corpo-vivente, mas antes no corpo-vivente ou por meio dele. Nomeadamente, eu não me apareço menos nas exigências e diretivas das coisas aparecentes, as quais são para satisfazer, com todos os seus ingredientes de caracteres de aparição e de doação que caracterizam o mundo prático do quotidiano. As coisas aparecentes “têm qualquer coisa para me dizer”, elas dizem aquilo que tenho de fazer. Nelas, a presença, o que é apresentado, está cercado por um halo daquilo que não está presente, mas que é, no entanto, possível e que, como possível, me é antecipadamente convidativo, indiferente ou repulsivo. Assim se vê que as coisas aparecentes são originariamente aquilo que é capaz de ser manipulado, conservado, modificado, utilizado, cuidado; originariamente, elas não são senão proveitos de uma atividade que sabe fazer qualquer coisa com elas e que, deste modo, através deste funcionar ativo, a si mesma se refere. Assim, eu apareço-me no campo de aparição como uma conexão não explícita de meios e fins, na qual a coisa aparecente e o corpo-vivente, funcionando como realizador, são momentos de sentido indispensáveis, que se completam mutuamente. A própria conexão finalística não aparece, porém, para si própria como uma doação fáctica, mas apenas na constante dinâmica da prefiguração e da realização, que vão no encalço uma da outra. Pode-se dizer que eu estou certamente presente nesta conexão finalística, no seu funcionar ativo, mas não objetivamente dado. O eu é uma atividade estruturada em que alguns momentos aparecem como dados, momentos que, porém, seriam destituídos de sentido e não poderiam existir sem o contexto, que não é dado. Assim é o inteiro modo de funcionamento do eu, ou seja, o modo como ele é fundamentalmente diferente do modo de ser das coisas, estados-de-coisas, processos, relações, que aparecem no horizonte deste funcionar. Esta diferença no modo de ser torna impossível que o eu apareça num ato de percepção, pois isso significaria retirá-lo do contexto projeto-realização e torná-lo um aparecente no interior e na base desse contexto. O eu não pode também ser agarrado num ato de reflexão — numa “percepção interna”, eventualmente — e ser captado “em pessoa”. A reflexão egóica deve ter um caráter totalmente diferente, um caráter essencialmente prático e uma origem na essência originariamente prática do nosso contexto vital.

Se as considerações anteriores são corretas, podemos também juntar-lhes as seguintes consequências.

Não se pode com razão manter o próprio conceito husserliano de fenômeno, da fase transcendental, enquanto correlato do defluxo subjetivo, “no qual o objetual se constitui”. O fenômeno não é nenhuma operação de uma constituição subjetiva, mas, ao contrário, as possibilidades “subjetivas” só no fen6omeno se tornam, elas próprias, por vez primeira claras.

Há um plano fenomenal, que é denominado por Heidegger “a compreensão do ser”, plano a partir do qual as coisas aparecentes, e também nós próprios, recebem aquelas determinações que são próprias a elas e a nós, enquanto entes. Este plano fenomenal não é de modo nenhum o nosso projeto, ele não é nenhuma obra da nossa subjetividade, mas antes um campo que devemos pressupor como fundamento de toda a claridade e acerca do qual não tem qualquer sentido transferi-lo para dentro de nós, para depois o projetar para fora de nós na forma da “liberdade”. Também não é nossa obra a compreensão do ser, mas somos antes nós, que somos bem uma existência em aparição, que dependemos da compreensão do ser, e é algo equívoco que Heidegger, numa certa fase do seu filosofar, tenha dito que apenas a liberdade pode deixar que para nós um mundo valha. O mundo — isto é, as possibilidades do nosso ser enquanto ser essencialmente “extático” — não nos é aberto pela liberdade própria, mas é antes a própria liberdade que é aberta pela compreensão do ser, juntamente com outros conteúdos mundanos aparecentes. Não somos nós, ou o nosso ser-aí [Dasein  ], quem, num projeto de mundo, dá o entendimento de qual seja o ente com que nos podemos relacionar, e como, mas é antes à compreensão do ser, ao fenômeno enquanto tal, que estamos disso devedores — não se pode nem é necessário ir mais além disto. A transcendência do ser-aí não é algo que saia dele próprio e que se projete para fora; neste sentido, ela não é nenhum “projeto”, mas antes um estar-fora-de-si e um receber-se, ambos essenciais.


Ver online : Jan Patocka


PATOCKA, Jan. O Subjectivismo da Fenomenologia Husserliana e a Exigência de Uma Fenomenologia Assubjectiva.


[1Traduzimos Leib por “corpo-vivente”, em contraposição a Körper, o simples corpo, evitando a tendência costumeira para verter a palavra alemã por “carne”, que não só é a tradução óbvia de Fleisch, não de Leib, como perde ainda, ao pôr unicamente o acento na passividade de um ressentir-se, toda a dimensão, própria do orgânico, de ser um centro não só passivo, mas também activo de exploração do mundo circundante [N. do T.].