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Ortega y Gasset: O DESTINO EXTRANATURAL DO HOMEM.

quarta-feira 23 de março de 2022

Meditação da Técnica
José Ortega y Gasset  
Trad. e prólogo de Luis Washington Vita  
1963

VI O DESTINO EXTRANATURAL DO HOMEM. — PROGRAMAS DE SER QUE DIRIGIRAM AO HOMEM. — A ORIGEM DO ESTADO TIBETANO

VI O DESTINO EXTRANATURAL DO HOMEM. — PROGRAMAS DE SER QUE DIRIGIRAM AO HOMEM. — A ORIGEM DO ESTADO TIBETANO

Nas lições anteriores procurei sugerir quais são os supostos que têm que dar-se no universo para que nele apareça isso que chamamos técnica . Dito em outra forma, a técnica implica tudo isso que enunciamos: que há um ente cujo ser consiste, antes de tudo, no que ainda não é, num mero projeto, pretensão ou programa de ser; que, portanto, esse ente tem que desgastar-se na realização de si mesmo. Não pode obtê-la senão com elementos reais, como o artista não pode realizar a estátua imaginada se não tem uma sólida matéria em que plasmá-la. A matéria, o elemento real onde e com o qual o homem "pode" chegar a ser de fato o que é em projeto, é o mundo. Este lhe oferece a possibilidade de existir e, ao mesmo tempo, grandes dificuldades para isso. Em tal disposição dos termos a vida aparece constituída como um problema quase de engenharia: aproveitar as facilidades que o mundo oferece para vencer as dificuldades que se opõem à realidade de nosso programa. Nesta condição fundamental de nossa vida é onde se insere o fato da técnica.

Dito assim, em fórmula abstrata, resulta talvez difícil de compreender. Porque esse programa extranatural que afirmamos ser o homem, e para servir ao qual se desdobra a técnica, soa a alguma coisa mística e inconcretável. Alguma clareza, todavia, trouxe ao assunto a rápida enumeração que fiz de alguns entre os muitos programas vitais em que o homem historicamente concretou seu ser: o bodhisatva hindu, o homem agonal da Grécia aristocrática do século VI, o bom republicano de Roma   e o estóico da época do Império, o asceta medieval, o hidalgo do século XVI, o homme de bonne compagnie de França do século XVII, a schöne Seele   dos fins do século XVIII na Alemanha ou o Dichter   und Denker   dos princípios do século XIX, o gentleman de 1850 na Inglaterra, etc.

Não é lícito deixar-me levar ao sugestivo trabalho de ir descrevendo o perfil pressionador do mundo que é cada um destes modos de ser do homem.

Unicamente farei notar alguma coisa que me parece de toda evidência. O povo no qual predomina a ideia de que o verdadeiro ser do homem é ser bodhisatva não pode criar uma técnica igual àquele outro no qual se aspira a ser gentleman. Ser bodhisatva é, evidentemente, crer que existir neste mundo de meras aparências é precisamente não existir de verdade. A verdadeira existência consiste para ele em não ser indivíduo, pedaço particular do universo, mas fundir-se no Todo e desaparecer nele. O bodhi-satva, pois, aspira a não viver ou a viver o menos possível. Reduzirá sua alimentação ao mínimo; pior para a técnica da alimentação! Procurará a imobilidade máxima, para recolher-se na meditação, único veículo que permite ao homem chegar ao êxtase, isto é, a pôr-se em vida fora deste mundo. Não é verossímil que invente o automóvel este homem que não quer mover-se. Ao contrário, suscitará todas essas técnicas tão alheias a nós europeus como são as dos faquires e iogas, técnicas do êxtase, técnicas que não produzem reformas na natureza material, mas no corpo e na psique do homem. Por exemplo, a técnica da insensibilidade e a catalepsia, da concentração, etc. Isto me chama a atenção de que a técnica é função do variável programa humano. Por outro lado, esclarece-nos também de tudo aquilo que o homem, numa de suas dimensões, tem um ser extranatural e que antes não conseguíamos intun. É evidente que existir como meditador e como extático, viver precisamente como não vi-vente, em constante intuito de anular o mundo e a própria potência, não é um modo natural de existir. Ser bodhisatva é, em princípio, não comer, não mover-se, não sexualizar, não sentir prazer nem dor; ser, em consequência, a negação vivente da natureza. Por isso é um exemplo drástico da extranaturalidade do ser humano e do difícil que é sua realização na natureza. Isso requer uma pré-adaptação desta que deixe espaço para uma qualidade de ser que tão radicalmente a contradiz. Mas a explicação naturalista do humano saltará aqui sustentando que a relação entre o projeto de ser e a técnica é inversa da que eu proponho, a saber: que é o projeto quem suscita a técnica, a qual, por sua vez, reforma a natureza. Exatamente o contrário, dir-se-á: na índia o clima e o solo facilitam tão enormemente a vida que o homem quase não necessita mover-se nem alimentar-se. É, pois, o clima e o solo os fatores que pré-formam esse tipo de vida búdica. Com isto, pela primeira vez, quem sabe, lhes soará agradavelmente, neste ensaio, aos homens de ciência que me ouvem.

Mas agora não posso deixar de confundir ao naturalista imaginário que me objeta ainda aquela pequeníssima satisfação. Não: existe, sem dúvida, uma relação entre clima e solo de um lado e programa de humanidade de outro, mas é bem distinta da que a anterior explicação supõe. Não irei expor agora qual é, a meu ver; pela primeira vez irei excusar-me de raciocinar e, em seu lugar, irei opor ao pretendido fato que o presumível objetante apresentou, simplesmente, outro fato positivo que atira aos trastes aquela explicação .

Se são o clima e a terra da índia os fatores que explicam o budismo da índia, não se compreende porque hoje a região budista por excelência é o Tibet. Porque seu clima e sua terra são a antítese da região do Ganges ou do Ceilão. Os altiplanos atrás do Himalaia são um dos lugares mais ásperos e crus do planeta. Ferozes vendavais dominam aquelas planícies imensas, aqueles amplíssimos vales. Tormentas de gelos os castigam durante grande parte do ano. Por isso não havia ali senão hordas trasumantes, inquietas e revoltadas, em contínua agressão umas com as outras. Guarneciam-se em suas tendas, feitas com a pele dos grandes ovinos altáicos. Nunca se pôde ali constituir um Estado. Eis aqui que um belo dia transpuseram os sublimes portos do Himalaia alguns missionários budistas e converteram à sua religião algumas daquelas hordas. Mas o budismo é, mais essencialmente que nenhuma outra religião, faina de meditação. No budismo não há um deus que se encarregue de salvar ao homem. É o homem que tem que salvar-se a si mesmo por meio da meditação, da oração. Como meditar na crudelíssima tempérie tibetana? Foi preciso construir conventos de pedra e cal, os primeiros edifícios que surgiram por ali. Não, pois, para simplesmente viver surge no Tibet a casa, mas para orar. Mas ocorreu que nas contendas tradicionais daquele país as hordas budistas se refugiaram nos conventos, que adquiriram assim um papel guerreiro, proporcionando a seus possuidores superioridade sobre os não budistas. Em suma, que o convento, fazendo de castelo, criou o Estado tibetano. Aqui não é o clima e a terra os fatores que engendram o budismo, mas, ao contrário, o budismo como necessidade humana, isto é, desnecessária, quem modifica o clima e terra mediante a técnica da construção.

Sirva o caso narrado como um bom exemplo da solidariedade que existe entre as técnicas; quero dizer da facilidade com que um artefato ideado para servir uma determinada finalidade se desloca para outras utilizações. Mais acima vimos como o arco primitivo, provavelmente musical, se converte em arma de caça e luta. Parecido é o caso de Tirteu, aquele ridículo general que os atenienses emprestaram aos espartanos. Velho e coxo, era, ainda, pelo estilo antiquado de suas elegias, o boboca da juventude vanguardis-ta na Ática. Mas chega a Esparta e a partir de então os desmoralizados lacedemônios começam a ganhar todas as batalhas. Por quê? Pois por uma simples razão técnica de tática. As elegias de Tirteu estavam compostas num ritmo arcaico, que, por ser bastante claro e pronunciado, facilitava a unidade de marcha e movimento na falange . Eis aqui uma técnica poética que se transforma em ingrediente criador dentro da técnica militar .

Mas não nos transviemos. Procurávamos brevemente confrontar a situação do homem quando é, como projeto, bodhisatva, com a do homem quando se propõe ser gentleman. A oposição é radical. Basta para percebê-lo que insinuemos alguns traços constituintes do gentleman. Convém antes notar que o gentleman não é o aristocrata. Sem dúvida foram os aristocratas ingleses os que principalmente idearam este modo de ser homem, mas inspirados pelo que diferencia o aristocrata inglês de todas as demais classes de nobres. Enquanto as demais são fechadas como classes, e inclusive fechadas quanto ao tipo de ocupações a que se dignavam dedicar-se — guerra, política, diplomacia, desporto e alta direção da economia agrícola — o aristocrata inglês, desde o século XVI, aceita a luta no terreno econômico do comércio, da indústria e das carreiras liberais. Como a história consistiria desde então principalmente nestas fainas, foi a única que se salvou, mantendo-se no jogo com plena eficiência . Daí que ao chegar o século XIX cria-se um protótipo de existência — o gentleman — que vale para todo o mundo. O burguês e o operário podem, em certa medida, ser gentleman; e mais, aconteça o que acontecer no futuro, talvez imediato, restará como uma das maravilhas da história o fato de que hoje até o operário mais modesto da Inglaterra é, em sua órbita, um gentleman. Esse modo de ser homem não implica, pois, aristocratismo. O aristocrata continental dos últimos quatro séculos é, antes de tudo, herdeiro: o homem que herdou grandes meios de vida, mas não teve que lutar nesta para conquistá-los. O gentleman como tal não é o herdeiro; ao contrário, supõe que o homem tem que lutar na vida, que exercer todas as profissões e ofícios, sobretudo os práticos (o gentleman não é intelectual), e precisamente nessa luta tem que ser gentleman. O pólo oposto ao gentleman é o gentilhomme de Versailles ou o Junker alemão.


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