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Ortega y Gasset: ESTRUTURA DO "NOSSO" MUNDO

quarta-feira 23 de março de 2022

Extrato do livro "O Homem e a Gente". Trad. J. Carlos Lisboa. Livro Ibero-Americano, 1960.

ESTRUTURA DO "NOSSO" MUNDO

Achamo-nos comprometidos na difícil faina de descobrir, com clareza irrecusável, isto é, com evidência genuína, quais as coisas, fatos, fenômenos, entre todos os que há, que merecem, por sua diferença com os demais, chamar-se "sociais". A coisa nos interessa sobremodo, porque é urgente que estejamos bem esclarecidos sobre o que sejam a sociedade e os seus modos. Como todo problema rigorosamente teórico, este é, ao mesmo tempo, um problema pavorosamente prático, no qual estamos hoje submersos, — por que não dizê-lo? — naufragados. Aproximamo-nos desse problema, não por mera curiosidade, como nos aproximamos de uma revista ilustrada, como, incorretamente, espiamos pela fresta de uma porta para ver o que está acontecendo do outro lado dela, ou como o erudito, frequentemente insensível a verdadeiros problemas, remexe no papelório de um arquivo pelo mero afã de bisbilhotar e de mergulhar nos pormenores de uma vida ou de um sucesso. Não; no presente afã, de averiguar o que é a sociedade, vai toda a nossa vida; por isso é um arqui-autêntico problema, por isso a sociedade é para nós, usando a terminologia enunciada, de uma enorme "importância". E dizer que nisso vai toda a nossa vida não é simples maneira de falar, portanto pura ou má retórica. Tanto nos vai nisso a vida que efetivamente já nos foi. Todos nous l’avons echappé belle. Cabe dizer que nós, a imensa maioria dos homens atuais, podemos e devemos considerar-nos muito concretamente como super-viventes, porque todos, nestes anos, temos estado a ponto de morrer… "por razões sociais". Nos atrozes acontecimentos destes anos, que de modo algum estão concluídos e liquidados, interveio muito principalmente, como sua causa decisiva, a confusão de que padecem os contemporâneos, a respeito da ideia de sociedade.

Para executar com todo rigor o nosso propósito, retrocedemos ao plano de realidade radical, — radical porque nele têm de aparecer, assomar, brotar, surgir, existir todas as demais realidades —, e que é a vida humana. Desta dissemos, em resumo:

I — Que vida humana, em sentido próprio e originário, é a de cada um, vista dela mesma; portanto, que é sempre a minha, — que é pessoal.

II — Que ela consiste em achar-se o homem, sem saber como nem porquê, obrigado, sob pena de sucumbir, a fazer, sempre, algo, numa determinada circunstância, — o que chamaremos: a circunstancialidade da vida, ou seja: vive-se em vista das circunstâncias.

III — Que a circunstância nos apresenta sempre diversas possibilidades de fazer, portanto: de ser. Isso nos obriga a exercer, queiramos ou não queiramos, a nossa liberdade. Somos livres a força. Graças a isso a vida é permanente encruzilhada e constante perplexidade. Temos de escolher em cada instante se, no instante imediato, ou em outro futuro, vamos ser aquele que faz isto ou aquele que faz outra coisa. Portanto, cada um está escolhendo o seu fazer; portanto: o seu ser, — incessantemente.

IV — A vida é intransferível. Ninguém me pode substituir nessa tarefa de decidir o meu próprio fazer e isso inclui o meu próprio padecer, pois tenho de aceitar o sofrimento que me vem de fora. Minha vida é, pois, constante e iniludível responsabilidade ante mim mesmo. É mister que aquilo que faço — portanto, o que penso, sinto, quero — tenha sentido e bom sentido para mim.

Se reunirmos esses atributos, que são aqueles que mais interessam para o nosso tema, temos que a vida é sempre pessoal, circunstancial, intransferível e responsável. E agora notem bem isto: se mais adiante nos encontrarmos com vida, nossa ou de outros, que não possua esses atributos, significa, sem dúvida nem atenuação, que não é vida humana em sentido próprio e originário, isto é, vida enquanto realidade radical, mas que será vida e, se se quiser, vida humana em outro sentido, será outra classe de realidade diferente daquela e, além disso, secundária, derivada, mais ou menos problemática. Teria graça se, em nossa pesquisa, tropeçássemos com formas de vida nossa que, ao ser nossa, teríamos de chamar humana, mas que, por lhe faltarem aqueles atributos, teríamos de chamar, também e ao mesmo tempo, não humana ou inumana. Agora entendemos bem o que possa significar essa eventualidade, que só anuncio para estarmos alerta.

Mas, no presente, tornemo-nos firmes na evidência de que só é propriamente humano em mim o que penso, quero, sinto e executo com meu corpo, sendo eu o sujeito criador disso ou o que a mim mesmo, como tal mim-mesmo acontece; portanto, só é humano o meu pensar se penso algo por minha própria conta, prevenindo-me do que ele significa. Só é humano aquilo que, ao fazê-lo, faço porque tem para mim um sentido, isto é, o que entendo. Em toda ação humana há, pois, um sujeito de quem ela emana, sujeito que, de igual modo, é agente, autor ou responsável por aquilo. Consequência do anteriormente dito é que minha humana vida, que me põe em relação direta com quanto me rodeia, — minerais, vegetais, animais, os outros homens, — é, por essência solidão. A minha dor de dentes — disse — somente a mim me pode doer. O pensamento que na verdade penso, — e não só repito mecanicamente por tê-lo ouvido, — tenho de pensá-lo eu sozinho ou eu na minha solidão. Dois e dois são verdadeiramente quatro, — isto é, evidentemente, inteligivelmente, unicamente quando me retiro um instante para pensá-lo sozinho.

Se vamos estudar fenômenos elementares, ao começar, temos de começar pelo mais elementar do elementar. Ora, o elementar de uma realidade é o que serve de base a todo o resto dela, seu componente mais simples e, por básico e simples, o que menos costumamos ver, o mais oculto, recôndito, sutil ou abstrato. Não estamos habituados a contemplá-lo e, por isso, nos é difícil reconhecê-lo, quando alguém no-lo expõe e nos tenta fazer vê-lo. Igualmente, de um bom tapete o que não vemos são os seus fios, precisamente porque o tapete é feito deles, porque eles são os seus elementos ou componentes. O que nos é habitual são as coisas, não os ingredientes de que estão feitas. Para ver os seus ingredientes, é preciso deixar de ver a combinação deles que é a coisa, assim como, para poder ver os poros das pedras de que é feita uma catedral, temos de deixar de ver a catedral. Na vida prática e cotidiana, o que nos importa é manejar as coisas já inteiras e feitas e, por isso, é a sua figura aquilo que é conhecido de nós — o habitual e fácil de entender. Vice-versa, para nos ocuparmos de seus elementos ou componentes, temos de ir a contrapelo de nossos hábitos mentais e desfazer imaginariamente, isto é, intelectualmente, as coisas, esquartejando o mundo para ver o que ele tem dentro, os seus ingredientes.

Ao haver vida humana, — disse, — há ipso facto dois termos ou fatores igualmente primários tanto um quanto o outro e, além disso, inseparáveis: o homem que vive e a circunstância, ou mundo em que o homem vive. Para o idealismo filosófico a partir de Descartes  , só o homem é realidade radical ou primária, e mais o: Homem reduzido a "une chose qui pense", res cogitans  , a pensamento, a ideias. O mundo não tem por si realidade, é somente um mundo ideado. Para Aristóteles  , vice-versa, só originariamente as coisas e sua combinação no mundo, têm realidade. O homem não é senão uma coisa entre as coisas um pedaço de mundo. Só secundariamente, graças ao fato de possuir razão, tem um papel especial e preeminente: o de raciocinar as demais coisas e o mundo, o de pensar o que são e o de iluminar no mundo o que é a verdade sobre o mundo, graças à palavra que diz, que declara ou revela a verdade das coisas. Aristóteles, porém, não nos descobre porque o homem tem razão e palavra, — logos   significa, ao mesmo tempo, uma e outra coisa — nem nos diz porque há no mundo, além das coisas, essa outra estranha coisa que é a verdade. A existência dessa razão é, para ele, um simples fato do mundo como qualquer outro, como o pescoço comprido da girafa, a erupção do vulcão e a bestialidade da fera. Neste decisivo sentido, digo que para Aristóteles, o homem, com a sua razão e tudo, não é nem mais nem menos do que uma coisa e, portanto, que para Aristóteles não há outra realidade radical senão as coisas ou ser. Se aqueles eram idealistas, Aristóteles e seus sequazes são realistas. A nós nos parece, porém, que o homem aristotélico, embora dele se diga que tem razão, que é um animal racional; como Aristóteles não explica, mesmo sendo filósofo, porque a tem, porque no universo há alguém que tem razão, acaba não dando a razão desse enorme acidente e, então, acaba não tendo razão, é palmar que um ser inteligente, que não entende porque é inteligente, não é inteligente: sua inteligência é apenas presumida. Situar-se mais além ou, se se quiser o giro inverso, mais aquém, mais adiante de Descartes e Aristóteles, não é abandoná-los nem desdenhar o seu magistério, E totalmente o contrário: só quem dentro de si absorveu e conserva ambos pode evadir-se deles. Esta evasão, porém, não significa superioridade alguma em relação aos seus gênios pessoais.

Ao partirmos, pois, da vida humana como realidade radical, saltamos para além da milenar disputa entre idealistas e realistas e nos encontramos com o fato de que são igualmente reais na vida, não menos primariamente um ou o outro — Homem e Mundo. O Mundo é o emaranhado de assuntos ou importâncias em que o Homem está queira ou não queira, enredado; o Homem é o ser que, queira ou não queira, se acha consignado a nadar nesse mar de assuntos e obrigado, sem remédio, a que tudo, isso lhe importe. A razão disso, é que, a vida se importa a si mesma; ainda mais: não consiste, ultimamente, senão em importar-se a si mesma,- neste sentido, deveríamos dizer, com toda formalidade terminológica, que a vida é o importante. Daí que o Mundo em que ela tem de transcorrer, tem de ser, consiste em um sistema de importâncias, assunto ou prágmata. Dissemos que o mundo ou circunstância é, por isso, uma imensa realidade pragmática ou prática, — não uma realidade que se compõe de coisas. "Coisas’ significa, na língua atual, tudo quanto tem por si e em si o seu ser, portanto, que é com independência de nós. Mas os componentes do mundo vital são somente os que são para e em minha vida, — não para si e em si. São somente enquanto faculdades e dificuldades, vantagens e desvantagens para que o eu que cada um é consiga ser; são, pois, com efeito, instrumentos, utensílios, móveis, meios que me servem, — o seu ser é um ser para as minhas finalidades, aspirações, necessidades, — ou então são como estorvos, faltas, travas, limitações, privações, tropeços, obstruções, escolhos, remoras, obstáculos que todas essas realidades pragmáticas acabam sendo e, por motivos que veremos, o serem "coisas" sensu stricto é algo que vem depois, algo secundário e em todo caso muito questionável. Não existindo em nossa língua palavra que enuncie, adequadamente, isso que as coisas são para nós em nossa vida, continuarei usando o termo "coisas" para que nos possamos entender com menos inovações de léxico.

Agora devemos investigar a estrutura e o conteúdo desse contorno, circunstância ou mundo em que temos de viver. Já dissemos que ele se compõe de coisas como prágmata, isto é, que nele nos achamos com coisas. Este achar-nos com coisas, encontrá-las, já requer certas averiguações e vamos, passo a passo, fazer rapidamente a sua inteira anatomia.

1) E o primeiro que é mister dizer parece-me ser isto: se o mundo se compõe de coisas, estas me terão de ser dadas uma a uma. Uma coisa é, por exemplo, uma maçã. Prefiramos supor que é a maçã do Paraíso e não a da discórdia. Nessa cena do Paraíso descobrimos logo um problema curioso: a maçã que Eva apresenta a Adão é a mesma que Adão vê, acha e recebe?

Porque, ao oferecê-la Eva está presente, visível, patente só meia maçã, e a que Adão acha, vê e recebe é também somente meia maçã. O que se vê, o que está, rigorosamente falando, presente, do ponto de vista de Eva, é algo diferente daquilo que se vê e está presente do ponto de vista de Adão. Com efeito, toda coisa corpórea tem duas faces e, como no caso da lua, só temos presente uma dessas faces. Percebemos agora, surpreendidos, algo que é, uma vez advertido, uma grande calinada, ou seja-, que ver, o que se chama estritamente ver, ninguém viu, nunca, isso que chama de maçã, porque esta tem, ao que se crê, duas faces, mas nunca está presente mais do que uma. Ademais, se há dois seres que a vêem, nenhum vê dela a mesma face, mas outra, mais ou menos diferente.

Certamente eu posso dar voltas em torno â maçã ou fazê-la girar em minha mão. Nesse movimento vão-se-me fazendo presentes aspectos, isto é, faces distintas da maçã, cada uma em continuidade à precedente. Quando estou vendo, o que se chama ver, a segunda face, lembro-me da que vi antes e somo-a àquela. Bem entendido, porém: esta soma, do recordado ao efetivamente visto, não faz que eu possa ver juntos todos os lados da maçã. Esta, pois, enquanto unidade total, portanto, no que entendo quando digo "maçã", jamais me está presente; assim, não é para mim com radical evidência, mas somente, em suma, com uma evidência, de segunda ordem, — aqui corresponde à mera lembrança, — em que se conservam nossas experiências anteriores acerca de uma coisa. Daí, à efetiva presença daquilo que só é parte de uma coisa, se vai automaticamente acrescentando o resto dela, do qual diremos, pois, que não está apresentado, mas sim compresentado ou compresente. Verão logo a luz que esta ideia do com-presente, da compresença anexa a toda presença de algo, ideia que se deve ao grande Edmundo Husserl  , nos vai proporcionar para esclarecer-nos sobre o modo pelo qual aparecem em nossa vida as coisas e o mundo em que as coisas estão.

2) O segundo que convém notar é isto: achamo-nos agora neste salão, que é uma coisa em cujo interior estamos, é um interior por estas duas razões: porque nos rodeia ou envolve por todos os lados e porque a sua forma é fechada, isto é, contínua. Sem interrupção, sua superfície se nos faz presente de forma que não vemos nada mais senão ela; não tem buracos ou aberturas, descontinuidades, brechas ou fendas que nos deixem ver outras coisas que não são ela e seus objetos interiores: assentos, paredes, luzes, etc. . . Imaginemos, porém, que, ao sair daqui, concluída esta lição, verifiquemos que não havia nada mais além, isto é, fora, que não havia o resto do mundo em torno dela, que as suas portas dessem não para a rua, para a cidade, para o Universo, mas para o Nada. Tal achado nos produziria um choque de surpresa e de terror. Como se explica esse choque se agora, enquanto estamos aqui, só tínhamos presente este salão e não havíamos pensado, — se eu não tivesse feito esta observação, — em se havia ou não um mundo fora de suas portas, quer dizer, em se existia em absoluto um fora? A explicação não pode oferecer dúvida. Adão também teria sofrido um choque de surpresa, embora mais leve, se houvesse acontecido que o que Eva lhe dava era somente meia maçã, a metade que ele podia ver, faltando a outra meia maçã compresente. Com efeito, enquanto este salão é para nós sensu-stricto presente, é-nos compresente o resto do mundo, fora do salão e, como no caso da maçã, essa compresença daquilo que nos é patente, mas que uma experiência acumulada nos faz saber que, mesmo não estando à vista, existe, está aí e se pode e se tem de contar com a sua possível presença, é um saber que em nós se converteu em habitual, que levamos em nós habitualizado. Ora, o que em nós atua por hábito adquirido, em razão de o ser, não o advertimos especialmente, não temos dele uma consciência particular, atual. Junto ao par das noções presente e compresente convém que distingamos também este outro par: o que para nós é atualmente, em um ato preciso, expresso, e o que para nós é habitualmente, que está constantemente sendo para nós, existindo para nós, mas nessa forma velada, não aparente, e como adormecida da habitualidade. Anote-se, pois, na memória, este outro par: atualidade e habitualidade. O presente é para nós em atualidade; o com-presente, em habitualidade.

Isso nos faz desembocar em uma primeira lei sobre a estrutura do nosso contorno, circunstância, ou mundo. Esta: o mundo vital se compõe de umas poucas coisas no momento presentes e de inumeráveis coisas, no momento latentes, ocultas, coisas que não estão à vista mas que sabemos ou cremos saber, — é o mesmo, para o caso, — que poderíamos vê-las, que poderíamos tê-las em presença. Conste, portanto, que agora chamo latente só aquilo que em cada instante não vejo, mas que sei que ou vi antes, ou poderia, em princípio, ver depois. Das sacadas de Madri se vê o expressivo, grácil, denteado perfil da nossa serra de Guadarrama; esse perfil nos é presente; sabemos, porém, por tê-lo ouvido ou por havê-lo lido, em textos que nos oferecem crédito, que há também uma cordilheira do Himalaia, a qual, nada mais que com um pouco de esforço e um bom talonário de cheques no bolso poderíamos entrever. Enquanto não fazemos esse esforço e nos falta, como é habitual, o supra dito talonário, o Himalaia está aí latente para nós, mas formando parte efetiva do nosso mundo nessa peculiar forma de potência.

A essa primeira lei estrutural do nosso mundo, que consiste, — repito — em fazer notar como esse mundo se compõe, em cada instante, de umas poucas coisas presentes e muitíssimas latentes, acrescentamos agora uma segunda lei não menos evidente; esta: não nos é presente nunca uma coisa sozinha, mas, ao contrário: vemos sempre uma coisa destacando-se sobre outras em que não prestamos atenção, e que formam um fundo sobre o qual se destaca o que vemos. Aqui se percebe claramente porque chamo a essas leis: leis estruturais; porque essas nos definem, não as coisas que há em nosso mundo, mas, a estrutura do mundo; por assim dizer descrevem rigorosamente a sua anatomia. Assim, esta segunda lei vem dizer-nos: o mundo em que temos de viver possui sempre dois termos e órgãos: a coisa ou coisas que vemos com atenção e um fundo sobre o qual aquelas se destacam. Com efeito, note-se que constantemente o mundo nos adianta uma de suas partes ou coisas, como um promontório de realidade, enquanto deixa, como fundo desatendido dessa coisa ou coisas atendidas, um segundo termo que atua com o caráter de âmbito no qual a coisa nos aparece. Esse fundo, esse segundo termo, esse âmbito é o que chamamos horizonte. Toda coisa advertida, atendida, que olhamos e com que nos ocupamos, tem um horizonte de onde e dentro do qual nos aparece. Agora me refiro somente ao visível e presente. O horizonte também é algo que vemos, que está aí para nós, patente, mas está para nós e o vemos quase sempre em forma de desatenção, porque nossa atenção está retida por tal ou qual coisa que representa o papel de protagonista em cada instante de nossa vida. Mais para lá do horizonte está aquilo que do mundo não nos é presente neste "agora", o que dele nos é latente.

Com isso se complicou um pouco mais para nós a estrutura do mundo, pois agora temos três planos ou termos nele: em primeiro termo: a coisa que nos ocupa; em segundo: o horizonte à vista, dentro do qual ela aparece e, em terceiro termo: o mais além latente "agora".

Precisemos o esquema dessa mais elementar estrutura anatômica do mundo. Como se adverte, começa a mostrar-se-nos uma diferença na significação de contorno e mundo, que até agora tínhamos usado como sinônimos. Contorno é a porção do mundo que abarca em cada momento o meu horizonte à vista e que, portanto, me é presente. Fique bem entendido que, — como sabemos por nossa primeira observação, — as coisas presentes apresentam só uma face, não o seu dorso, que fica apenas com-presentado; vemos somente o seu anverso e não o seu reverso; contorno é, pois, o mundo patente ou semi-patente, em tomo. Nosso mundo, porém, contém sobre este, mais além do horizonte e do contorno, uma imensidade latente em cada instante determinado, feita de puras compresenças; imensidade, em cada situação nossa, recôndita, oculta, tapada por nosso contorno e que envolve este. Repito uma vez mais: esse mundo latente per accidens  , como dizem nos seminários, não é misterioso, nem ar-cano, nem privado de possível presença, mas se compõe de coisas que vimos ou que podemos ver, mas que em cada instante atual estão ocultas, cobertas para nós por nosso contorno; mas nesse estado de latência ou veladura, atuando em nossa vida como habitualidade, da mesma forma que atua agora em nós, sem que o advirtamos, o fora deste salão. O horizonte é a linha fronteiriça entre a porção patente do mundo e a sua porção latente.

Em toda essa explicação para tornar o assunto mais fácil e pronto, me referi somente à presença visível das coisas, porque a visão e o visível são a forma de presença mais clara. Por isso quase todos os termos que falam do conhecimento e de seus fatores e objetos são, desde os gregos, tomados de vocábulos vulgares que na língua se referem ao ver e ao olhar. Ideia em grego é a vista que oferece uma coisa, seu aspecto, — que em latim vem, por sua vez, de spec, ver, olhar. Daí: espectador o que contempla; inspector; daí respeito, isto é, o lado de uma coisa que se olha e considera; circunspecto, cauteloso, que olha em redor, não se fiando nem de sua sombra, etc.

O ter eu preferido referir-me somente à presença visível não quer dizer que ela seja a única, — não menos presentes são para nós, e muito, outros caracteres. Reitero uma vez mais que, ao dizer que as coisas nos são presentes, digo algo cientificamente incorreto, pouco rigoroso.

É um pecado filosófico que cometo com muito gosto, para facilitar o ingresso nessa maneira radical de pensar a realidade básica e primigênia que é nossa vida. Mas conste que essa expressão é inexata. O que nos é propriamente presente não são as coisas, mas as cores e as figuras que as cores formam; resistências a nossas mãos e membros, maiores ou menores, de um ou de outro cariz; isto é, durezas e branduras, a dureza do sólido, a resistência deslizante do líquido ou do fluido, da água, do ar; cheiros bons e maus, etéreos, aromáticos, preciosos, fétidos, balsâmicos, almiscarados, picantes, caprinos, repugnantes; rumores que são murmúrios, ruídos, zum-zuns, guinchos, estridores, zumbidos, estrépitos, estampidos, estrondos e, assim, até onze classes de presenças que chamamos "objetos dos sentidos", pois se deve advertir que o homem não possui somente cinco sentidos como reza a tradição mas, pelo menos, onze, que os psicólogos nos ensinaram a diferenciar muito bem.

Ao chamá-los "objetos dos sentidos", substituímos os nomes diretos das coisas patentes, que integram prima facie o nosso contorno, com outros nomes que não os designam diretamente, mas que pretendem indicar o mecanismo pelo qual os advertimos ou percebemos. Em vez de dizer coisas que são cores e figuras, ruídos, cheiros, etc, dizemos "objetos dos sentidos", coisas sensíveis que são visíveis, tangíveis, audíveis, etc. Ora, — e tenha-se isto em muito boa conta, — que existam para nós cores e figuras, sons, etc. graças ao fato de que temos órgãos corporais que cumprem a função psico-fisiológica de fazer com que os sintamos, de produzir em nós as sensações deles; tudo isso será tão verossímil, tão provável quanto queirais, mas é somente uma hipótese, um intento nosso de explicar essa maravilhosa presença para nós do nosso contorno. O inquestionável é que essas coisas estão aí, nos rodeiam, nos envolvem e temos de existir entre elas, com elas, apesar delas. Trata-se, pois, de duas verdades muito elementares e básicas, mas de qualidade ou ordem muito diferente: que as coisas cromáticas e suas formas, que os ruídos, as resistências, o duro e o brando, o áspero e o polido estão aí: é uma verdade firme. Que tudo isso está aí porque temos órgãos dos sentidos e estes são o que se chama na fisiologia, — com um termo digno do médico de Molière, — "energias específicas": é urna verdade, provável, somente provável, quer dizer hipotética.

Não é isto, porém, o que nos interessa agora; ao contrário, e muito mais: fazer notar que a existência dessas coisas, chamadas sensíveis, não é a verdade primária e inquestionável que se tem a dizer sobre o nosso contorno, não enuncia o caráter primário que todas essas coisas nos apresentam ou, dito de outro modo, que essas coisas são para nós. Ao chamá-las "coisas" e dizer que estão aí em nosso redor, subentendemos que nada têm a ver conosco, que por si e primariamente são, com independência de nós e que, se nós não existíssemos, elas continuariam sendo igualmente. Ora, isso já é mais ou menos suposição. A verdade primeira e firme é esta: todas essas figuras de côr, de claro-escuro, de ruído, som e rumor, de dureza e maciez são tudo isso, referidas a nós e para nós, em forma ativa. Que quero dizer com isso? Qual é essa atividade sobre nós? Em que primariamente consistem? Muito simples: em ser-nos sinais para a conduta de nossa vida, em avisar-nos que algo, com certas qualidades favoráveis ou adversas, que nos importa levar em conta, está aí, ou vice-versa, que não está, que falta.

O céu azul não começa por estar lá no alto tão quieto e tão azul, tão impassível e indiferente a nós, mas começa originariamente por atuar sobre nós, como um riquíssimo repertório de sinais úteis, para a nossa vida, sua função, sua atividade, o que nos faz atender a ele e, graças a isso, vê-lo, em seu papel ativo de semáforo. Faz-nos sinais. Desde logo o céu azul nos indica bom tempo e é para nós o primeiro relógio diurno com o sol andejo que, como laborioso e fiel empregado da cidade, como um serviço municipal, muito embora — caso raro! — gratuito, realiza cotidianamente o seu percurso do Oriente ao Ocaso,- e noturnamente as constelações que nos indicam as estações do ano e os milênios, — o calendário egípcio se baseia nas mudanças milenárias de Sírio, — enfim, nos assinalam as horas. Mas não pára aqui a sua atividade indicadora, advertidora, sugeridora. Não um supersticioso homem primitivo, mas Kant  , nada menos que Kant, para tal efeito, há bem pouco tempo, — em 1788, — resume todo o seu glorioso saber dizendo-nos: "Duas coisas existem que inundam a alma de assombro e veneração sempre novos, e que se tornam maiores quanto mais frequente e detidamente delas se ocupa a nossa meditação: o céu estrelado sobre mim e a lei moral   dentro de mim".

Quer dizer que o céu, além de nos indicar todas essas mudanças úteis, — clima, horas, dias, anos, milênios, — úteis, mas triviais, nos indica pelo visto, com a sua noturna presença patética em que palpitam as estrelas, — palpitantes não se sabe porquê, — a existência gigante do Universo, de suas leis, de suas profundidades e a ausente presença de alguém, de algum Ser prepotente que o calculou, criou, ordenou, enfeitou. É inquestionável que a frase de Kant não é apenas uma frase, mas descreve pulcramente um fenômeno constitutivo da vida humana: na escura noturnidade de um céu limpo, o céu cheio de estrelas nos está piscando inumeravelmente, parece querer dizer-nos algo. Compreendemos muito bem Heine, quando nos insinua que as estrelas são pensamentos de ouro que a noite tem. O seu palpebrar, ao mesmo tempo minúsculo em cada uma e imenso na abóbada inteira, é para nós um permanente incitamento para transcendermos do mundo, que é o nosso contorno, para o radical Universo.


Ver online : ORTEGA Y GASSET