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Ortega: MAIS SOBRE OS OUTROS E EU. BREVE EXCURSÃO RUMO A ELA

quarta-feira 23 de março de 2022

Extrato do livro "O Homem e a Gente". Trad. J. Carlos Lisboa. Livro Ibero-Americano, 1960.

O nosso contorno real tem um centro, — o "aqui" em que está o meu corpo, — e uma periferia delimitada por uma linha que chamamos "horizonte", isto é, que inclui tudo quanto há à vista. O vocábulo horizonte nos vem do grego orixein, delimitar, plantar marcos que encerram e demarcam um espaço. Esses conceitos e nomes são para nós termos técnicos a que já estamos habituados pelo que foi dito nas lições anteriores; junto com muitos outros, com os quais creio ter conseguido habituar-nos, vamos adquirindo um capital comum de noções e vocábulos que nos permitem entender-nos e, graças a isso, poder avançar para questões que, na realidade, são mais difíceis, sutis, refinadas, mas que, com a ajuda desses conceitos já adquiridos, serão muito mais fáceis e apreensíveis. Essas noções preparatórias servirão como pinças de finas pontas que permitam apreender, isto é, compreender coisas bastante delicadas e filiformes. Isto significa que estamos já em pleno   filosofar. De certo modo, o filósofo e o barbeiro são do mesmo grêmio: o barbeiro corta o pêlo e o filósofo também, — apenas, o filósofo corta cada fio em quatro.

Agora, porém, reiterei a noção de horizonte para fazer notar que, como tudo do mundo estritamente corporal, ele nos leva a empregar sua noção, — a noção de horizonte, — na ordem incorporai. E assim como, anteriormente, eu indicava que à estrutura efetiva do mundo corpóreo em regiões espaciais correspondia um diagrama imaginário e ideal  , em que situamos os assuntos incorpóreos, digo agora que ao meditar, analisar um tema, o homem tem também um horizonte que, como o corpóreo, se vai deslocando conforme a nossa meditação, a nossa análise avança, e conforme vão, pelo mesmo motivo, entrando nele e aparecendo à nossa vista, novas coisas e, com isso, novos problemas. Meditar é singrar, marinhar entre problemas, muitos dos quais vamos esclarecendo. Atrás de cada um se divisa outro, de costas ainda mais atrativas, mais sugestivas. Reclama esforço, sem dúvida, e constância, ir ganhando o barlavento aos problemas, mas não há delícia maior que chegar a costas novas; e até o mero tomar rumo, como diz Camões "por mares nunca d’antes navegados". Se se me abre um crédito de atenção, desde agora anuncio claras paisagens e prometo arquipélagos.

Dizia que cada passo faz entrar em nosso horizonte novas coisas. Ingressou, assim, em nosso horizonte meditativo, uma grande peça: o Outro, — isto é: o outro homem, nada menos! Dele, não nos é presente senão um corpo, mas um corpo que é carne; e a carne, além dos outros sinais semelhantes que os demais corpos nos fazem, tem o dom enigmático de nos indicar um intus, um dentro ou intimidade. Isto já acontecia, em certa medida, com o animal. O corpo daquele que vai ser para nós outro Homem, ou o outro, é um riquíssimo "campo de expressividade". A sua face, o seu perfil, o seu talhe inteiro são já expressão de alguém invisível a que pertencem. Igualmente, os seus movimentos úteis, o seu ir e vir, o seu manipular as coisas.

Vejo que um corpo humano corre e penso: ele tem pressa, ou está treinando para um "cross-country". Vejo que, num lugar, onde há muitas lápides de mármore, um corpo cava uma cova grande na terra e penso: ele é um coveiro e está abrindo a fossa fúnebre. Se sou poeta, parto daí e imagino: talvez a tumba para Yorick, o bufão da Dinamarca; talvez chegue Hamlet e manipule o seu crânio e diga os seus vagos, trêmulos dizeres.

Mais do que o dito antes, — e aqui está a curiosidade, — são os movimentos inúteis do Outro, os que não servem a nenhuma finalidade aparente, a saber: os seus gestos — que nos revelam muito dele. O Outro Homem nos aparece, sobretudo, em sua gesticulação e, com fundamento não escasso, podemos dizer que um homem é ou são os seus gestos, a ponto de que, se algum não faz gestos, essa ausência ou carência é, por sua vez, um gesto, porque é a detenção de gestos ou a mudez de gestos, e cada uma dessas duas coisas nos manifesta, anuncia ou revela duas muito peculiares intimidades, dois diversos modos de ser do Outro. No primeiro caso, advertimos a repressão do gesto que já apontava, que ia disparar-se e advertimos se esse gesto germinante é mais ou menos bem reprimido pelo Outro. Recorde-se a quantidade de coisas íntimas do Outro que "os gestos mal reprimidos" nos têm revelado.

Em face deles, eu notava o caso daquele que não faz gestos, ou pouco menos, do mundo em gestos. Quando temos diante de nós um homem assim, dizemos que a sua figura é inexpressiva, que "não nos diz nada". E, como aparte os casos individuais, há certos tipos ou estilos de gesticulação que pertencem à coletividade, acharíamos que existem povos em que é normal uma riquíssima e saborosa expressividade: os meridionais; e outros, os do Norte em que é normal a quase total, — digo somente quase, — inexpressividade. Recordem-se as vezes em que permanecemos desolados diante da grande face inerte de um alemão, ou de um inglês, face sem estremecimentos, sem vibração, que parece um deserto, um deserto de alma, isto é, de intimidade! Observações sobre isso e sobre o motivo por que é assim, quero dizer, porque há, em uns casos, tão abundante expressividade e porque, em outros, mudez expressiva, podem achar-se nesses estudos que, embora escritos há muito, creio ainda vigentes: Sobre a expressão, fenômeno cósmico e Vitalidade, alma, espírito. (El Espectador, volume VII, e El Espectador, volume V, respectivamente em Obras Completas, Tomo II)

Tive de contentar-me, anteriormente, com falar do olhar, que é tão expressivo porque é ato que vem direto da intimidade, com a precisão retilínea do disparo, e, além disso, porque o olho com a cavidade super-ciliar, as pálpebras inquietas, o branco da esclerótica e os maravilhosos atores, que são a iris e a pupila, equivalem a todo um teatro   com o seu cenário e a sua companhia dentro. Os músculos oculares, — ou orbiculares e palpebrais, o levator, etc., as fibras musculares da iris, — são de urna fabulosa finura de funcionamento. Tudo isso torna possível que se possa diferenciar, em termos tão mínimos, cada olhar, mesmo na dimensão única da profundidade íntima de onde foi emitido. Há, nessa ordem, o olhar mínimo e há o máximo olhar ou, — como, referindo-me especialmente à relação homem — mulher, os chamava, — o olhar concedido e o olhar saturado. As dimensões, porém, em que os olhares se diferenciam e, portanto, podem classificar-se e medir-se, são muitíssimas; para citar somente alguns exemplos de espécies dessa fauna dos olhares: há o olhar que dura um instante e o olhar insistente; o que deslisa sobre a superfície do olhado e o que a ele se prende como um gancho; o olhar reto e o olhar oblíquo, cuja forma extrema tem o seu nome em nossa língua e se chama: olhar com o rabo do olho, a máxima obliquidade. Diferente dos oblíquos, embora a direção do eixo visual seja sesga, é o olhar de soslaio. Cada uma dessas classes de olhar significa para nós o que se passa na intimidade do outro homem, porque cada um, isto é, cada ato de olhar é engendrado por uma determinada intenção, intenção que, quanto menos consciente seja, naquele que olha, tanto mais autenticamente nos é reveladora. Os olhares constituem, assim, um vocabulário e, como neste, acontece que a palavra isolada costuma ser equívoca e somente inserta no conjunto da frase, — e esta, no contexto do escrito ou da conversação, — se torna suficientemente precisa. Sobre essa necessidade de contexto, que os gestos, como as palavras, têm, para precisar o seu sentido, insiste muito acertadamente o grande psicólogo Karl Bühler, no seu livro Teoria da Expressão. (Publicado pela Editora Revisto de Occidente, 1950)

O olhar de soslaio não expressa, — se é somente isso, olhar de soslaio, — o desejo de ocultar o nosso mesmo olhar, caso, — este último, — muito curioso e que proclama quanto são reveladores, denunciadores os nossos olhares, uma vez que, em alguns casos, os homens se esforçam deliberadamente em ocultá-los, fazendo, assim, de seu olhar um ato clandestino, como de latrocínio e contrabando. Por isso, nossa língua chama tão eficazmente a esse olhar furtivo ou "às furtadelas", — o olhar que quer ver, mas que não quer ser visto. Há olhares furtivos do mais doce latrocínio. Isso me traz à mente uma copla de seguidilhas que diz:

No me mires, que míran
si nos miramos,
y es menester, si miran,
nos contengamos.
Nos contendremos,
y cuando no nos miren
nos miraremos.

[Não me olhes, que olham
se nos olhamos,
e é mister, se olham,
nos contenhamos.
Conter-nos-emos,
e quando não nos olhem,
nos olharemos.]

Seja isto dito a propósito do olhar furtivo. Há, porém, outro olhar muito mais complicado; a meu juízo, é o mais complicado de todos e, por isso mesmo, talvez o mais eficaz, o mais sugestivo, o mais delicioso, o mais feiticeiro. É o mais complicado porque é, a um tempo, furtivo e o mais oposto à furtividade, um olhar que, como nenhum, quer fazer constar e fazer saber que olha. Dessa dualidade, que a sí mesma se contradiz e se contrafaz, provém o seu poder de encantamento: é, em suma, o olhar com os olhos semi-cerrados ou, com dizem muito apropriadamente os franceses, les yeux en coulisse. é o olhar do pintor quando se afasta do quadro, para controlar o efeito da pincelada que acaba de dar. é furtivo porque, ao estarem fechadas as pálpebras quase três quartos, parece que ele quer esconder o olhar, — mas é justamente ao contrário, — porque o olhar, assim comprimido pela fresta que as pálpebras deixam, sai como uma seta bem apontada. São olhos como dormidos que, por trás do seu embuço, em tão doce sopor, estão sumamente despertos. Quem tem um olhar assim tem um tesouro. Paris, tão sensível a essas coisas humanas, a essas humanidades, viveu quase sempre subjugado por alguém que tinha les yeux en coulisse. Por exemplo, enquanto as favoritas dos grandes Bourbons, — a senhorita de La Vallière, a Montespan de Luís XIV, a Pompadour de Luís XV, — a última amante deste gozou de imensa popularidade e isso, não somente nem tanto porque fosse a primeira favorita real oriunda das classes populares, mas porque a Dubarry olhava o mundo com os seus yeux en coulisse. E quando se olha assim para Paris, Paris fica hipnotizado e se entrega. Semelhantemente, quando eu era rapazote e pela primeira vez visitei Paris, a grande cidade andava rendida a Lucien Guitry, o homem com les yeux en coulisse.

Não nos demoraremos mais nesse mundo dos olhares em que desejei somente roçar de passagem, um pouco como exemplo de que a única coisa que nos é efetivamente presente do outro homem é o seu corpo, mas que este, por ser carne, é um campo de expressividade, um semáforo de sinais praticamente infinito.

Precisemos qual a situação a que já chegamos: quando, entre minerais vegetais e animais, me aparece um ser, consistente em certa forma corporal, a que chamam "humana", embora somente esta me seja presente, faz-se, para mim, com-presente, nela, algo que por si é invisível e, mais em geral ainda, insensível, a saber, uma vida humana; algo, pois, semelhante ao que eu sou, pois eu não sou senão "vida humana". Esta com-presença de algo, que não pode por si ser presente, se funda inquestionavelmente em que aquele corpo, que é carne, me faz peculiares sinais para uma intimidade: é um campo expressivo de "intimidades". Ora, isso que chamo uma "intimidade", ou vida, só me é própria e diretamente conhecida, isto é, só me é patente, presente, evidente, quando se trata da minha. Portanto, falar de que no corpo de forma humana se faz com-presente, para mim, outra intimidade é dizer algo demasiado contraditório, ou, pelo menos, muito difícil de entender. Porque originariamente não há outra intimidade senão a minha. Que queremos dizer, quando dizemos que temos diante de nós Outro, isto é, outro como eu, outro Homem? Isso implica que esse novo ser — nem pedra, nem planta, nem mero animal — é eu, ego  , mas, ao mesmo tempo, é outro, alter, é um alter ego. Este conceito de alter ego, — de um eu que não sou eu, mas que é precisamente outro, portanto, não-eu, — tem todo o ar de se parecer com um quadrado redondo, protótipo do contraditório e impossível. E, sem embargo, a coisa mesma é indubitável. Aí, diante de mim, há outro ser que me aparece como sendo também um eu, um ego. Mas eu, ego, não significa até agora para nós, senão "vida humana", e vida humana, — já o dissemos, — não é própria, originária e radicalmente senão a de cada um, portanto: a minha. Tudo que existe nela, a saber: o homem que eu sou e o mundo que vivo, tudo tem, como veremos a seguir, o caráter de ser meu, de pertencer-me, ou ser o que é meu. Eis que agora aparece nesse mundo meu um ser que se me apresenta, embora em forma de com-presença, como sendo, ele também, "vida humana", portanto, com uma vida sua, — não minha, — e, consequentemente, também com um mundo seu que, originariamente, não é o meu. A coisa é enorme e estupefaciente, apesar de que nos seja cotidiana. O paradoxo é fenomenal, pois advém que, no horizonte da minha vida, a qual consiste exclusivamente no que é meu e só meu e é, por isso, tão radical solidão, me aparece outra solidão, outra vida, em sentido estrito, incomunicante com a minha e que tem o seu mundo, um mundo alheio ao meu, um outro mundo.

O mundo da minha vida me aparece como diferente de mim, porque me resistia, desde o começo, ao meu corpo, — a mesa resiste à minha mão, — mas o meu próprio corpo, mesmo sendo o mais próximo do meu mundo, resiste também a mim mesmo, não me deixa fazer, sem mais nada, o que eu queira; me ocasiona dores, enfermidades, fadigas; e, por isso, o distingo de mim, enquanto, por outra parte, modera os meus projetos insensatos, as desmedidas da minha fantasia; por isso, contra o que se costuma pensar, o corpo é o gendarme do espírito. Não obstante, todas essas resistências e negações de mim, que o meu mundo é para mim, são minhas, patentes à minha vida, pertencentes a eia. Assim, é inadequado dizer que o meu mundo é o não-eu. Em todo caso, será um não-eu meu e, portanto, só relativamente um não-eu. Mas, no corpo de um homem que, como tal, pertence ao meu mundo, se me anuncia e denuncia um ser, — o Outro, — e um mundo, o seu, que me são absolutamente alheios, absolutamente estrangeiros, estranhos a mim e a tudo meu. Agora, sim: tem cabimento falar estritamente de um não-eu. O puro não-eu não é, então, o mundo, mas o outro Homem, com o seu ego fora do meu e o seu mundo incomunicante com o meu. Esse mundo do outro é para mim inapreensível, inacessível, se falarmos com rigor. Não posso entrar nele porque não posso entrar diretamente, porque não posso fazer patente a mim o eu do outro. Posso suspeitá-lo e esta suspeita, que me é patente e que encontro em meu mundo, próprio ou primordial, é a que me faz com-presente esse efetivo e estrito não-eu, que o outro e seu mundo são para mim. Este é o enorme paradoxo: em meu mundo aparecem, com o ser dos outros, mundos alheios ao meu como tais, isto é, como alheios, que se me apresentam como inapresentáveis, que me são acessíveis como inacessíveis, que se patenteiam como essencialmente latentes.

Daí a importância sem par que tem na vida humana, que é sempre a minha, a presença com-presente do Outro Homem. Porque não é outro no sentido ligeiro em que a pedra que vejo ou toco é outra coisa, não eu, ou outra coisa, não a árvore, etc, mas, ao aparecer-me o outro Homem, me aparece o que não é a minha vida toda, o que não é o meu universo todo, portanto: o radicalmente outro, o inacessível, o impenetrável e que, não obstante, existe, existe como a pedra que vejo e toco. Não me digam que a comparação é incorreta, porque a pedra é para mim, porque a vejo é a toco" e o inacessível é, como o seu nome indica, algo a que não tenho acesso, que não posso ver nem tocar, mas que fica sempre fora, latente, mais além de quanto está ao meu alcance. Trata-se precisamente disso: não digo que com o outro Homem, me seja acessível o inacessível; digo, ao contrário, que com ele descubro o inacessível como tal, o inacessível em sua inacessibilidade, exatamente a mesma coisa que com a maçã: é-me dada em com-presença a metade dela que não vejo, — que não vejo, mas que é aí para mim.

Foi Husserl   quem formulou de maneira precisa, — note-se que a intencionalidade própria se constitui, (em nossa terminologia "aparece" —) um eu, um ego que não é como "eu mesmo", mas como vida, as Meditações Cartesianas, de 1931.

Nelas diz Husserl: "Eis que, em minha intencionalidade própria, (expressão que para os nossos efeitos dagora significa o mesmo que "minha vida como realidade radical"), em minha intencionalidade própria se constitui (em nossa terminologia "aparece") um eu, um ego que não é como "eu mesmo", mas como refletindo-se em meu próprio "ego". Mas o caso é que esse segundo ego não está simplesmente aí, nem, falando propriamente, me está dado "em pessoa", (em nosso vocabulário: "é presente para mim") mas está constituído a título de "alter ego" e o ego que esta expressão "alter ego" designa como um dos seus momentos sou "eu mesmo" em meu ser próprio. O "outro", por seu sentido constitutivo, remete a mim mesmo: o "outro" é um reflexo de mim mesmo e, sem embargo, falando propriamente, não é um reflexo: é meu análogo e, não obstante, não é tampouco um análogo no sentido habitual do termo" (Méditations Cartésiennes, Paris 1931, pág. 78).

Notem como Husserl se vê obrigado, — para enunciar o que é o Outro, em seu caráter mais simples e primário, portanto, não precisando ainda tal ou qual determinado Outro, mas, em geral e em abstrato o Outro, — se vê obrigado a empregar contínuas contradições: o Outro é eu, já que é um eu; mas um eu que não sou eu,- logo, outra coisa e não o meu eu, bem conhecido, — é claro, — de mim mesmo. Intenta, em vista disso, expressar a estranha realidade que é o outro, dizendo que não é "eu", mas sim algo análogo ao meu eu, — mas tampouco é análogo, porque ao cabo, tem muitos componentes idênticos a mim, portanto, a "eu". Continua logo: "se começo por delimitar bem o ego, o "eu", em seu ser efetivo e preciso, (em vez de ego, ponhamos minha vida) e, se se abarca num olhar de conjunto o conteúdo desse ego, (acrescento: dessa minha vida) e as suas articulações. . . se formula necessariamente esta questão: como acontece que o meu ego, a minha vida, no interior daquilo que ela propriamente é, possa, de algum modo, constituir ou fazer que nela apareça o "Outro", precisamente como sendo estranho a ela, à minha vida, ou ao meu ego, — isto é: como é possível que lhe confiram sentido de realidade, sentido que o coloca fora do conteúdo concreto de "mim mesmo", da minha vida, que é a realidade em que aparecer?" (Traduzi o período de Husserl, empregando o acréscimo ou substituição de termos que pertencem à minha doutrina. [Ibidem, págs. 78-79.]).

Husserl foi o primeiro a precisar o problema radical e não meramente psicológico que eu intitulo: "a aparição do Outro". O desenvolvimento do problema por Husserl, a meu juízo, é muito menos afortunado do que a sua formulação, apesar de que abundam nesse desenvolvimento achados admiráveis. O pensamento de Husserl foi o de mais vasta influência neste meio século, cuja divisória do outro meio transporemos dentro de poucos dias; mas, não há sentido em que eu tente aqui o exame crítico da sua teoria do Outro. Não interessa à exposição da minha doutrina fazer essa crítica a fundo da doutrina de Husserl, pela simples razão de que os seus princípios fundamentais o obrigam a explicar por que meios se produz a aparição do outro, ao passo que, partindo nós da vida como realidade radical, não necessitamos explicar os mecanismos em virtude dos quais o Outro Homem nos aparece mas somente como aparece, fazer constar que está aí e como está aí. Só um ponto dessa teoria de Husserl, — e é o inicial dela, — sou forçado a repudiar porque, talvez em toda a obra de Husserl, exata, cuidadosa, — "vou devagar, passo a passo", me dizia, — escrupulosa como não existe outra em toda a história da filosofia, a não ser, em diferente estilo, a de Dilthey  , em toda a sua obra, — digo, — não encontro erro tão grave precisamente pelo descuido que revela. Trata-se disto: o outro Homem, segundo Husserl, me apareceria porque o seu corpo assinala uma intimidade que fica, portanto, latente, mas dada em forma de com-presença, como a cidade é agora para nós com-presente em torno a cada sala, precisamente porque esta, ao ser fechada, nos oculta sua presença. Ressalvado que a intimidade não é como a cidade, algo que, ao sair eu de onde estou, posso ver, mas que é ela por natureza oculta: até para o mero com-presentar-se necessita de um corpo. Como é então que eu creio ter diante de mim, ao ver um corpo humano, uma intimidade como a minha intimidade, um eu como o meu eu, — não digo idêntico mas, pelo menos similar? A resposta de Husserl: por uma transposição ou projeção analógica. Analogia   existe quando quatro termos se correspondem dois a dois, por exemplo: João comprou a Pedro um monte de caça e Luís comprou a Frederico uma casa,- João e Luís fizeram, pois, algo não igual mas análogo, a saber: compraram uma coisa a outro. Em toda analogia tem de haver um termo comum.

Em nosso caso a transposição analógica, segundo Husserl, consistiria nisto: se o meu corpo é corpo — carne porque estou nele — no corpo do Outro deve estar também outro Eu, um alter ego. O fundamento desta analogia, o termo comum, comum no sentido de similar, seria o meu corpo e o do Outro. E, efetivamente, a ideia de Husserl é esta: o meu corpo é a coisa do mundo que me está mais próxima, tão próxima que, em certo sentido se confunde comigo, já que eu estou onde ele está, a saber, aqui, hic. Mas eu me posso deslocar e com isso deslocar o aqui, de sorte que posso levar o meu corpo ao lugar que, d’aqui, hic é um ali illic. Ora, deste meu aqui me aparece ali, illic, um corpo como o meu que somente se diferencia do meu pelo aspecto que lhe dá a sua distância d’aqui; portanto, o seu estar ali. Mas essa diferença não faz diferentes esse corpo do Outro e o meu, porque tendo-me eu deslocado ou podendo fazê-lo a esse lugar que agora é ali, illic, sei que dali, — illinc, — se vê o corpo aqui com algumas variantes. Se eu pudesse efetivamente estar ao mesmo tempo aqui e ali, veria o meu corpo ali como vejo o corpo do Outro.

Nesta descrição de como me é originariamente, — estamos falando sempre do modo originário de aparecerem as coisas, — de como me é originariamente dado o corpo do Outro, há dois erros: um garrafal e o outro, nada menor mas que podemos, senão admitir, pelo menos desculpar.

O erro garrafal consiste em supor que a diferença entre o meu corpo e o do Outro é somente uma diferença na perspectiva, a diferença entre o visto aqui e o visto daqui, hinc, ali, illic. Mas a verdade é que isso que chamam "meu corpo" se parece pouquíssimo com o corpo do outro. A razão é esta: o meu corpo não é meu somente porque é a coisa mais próxima de mim, tanto que me confundo com ele e estou nele, a saber, aqui. Esta seria apenas uma razão espacial. É meu porque é para mim o instrumento imediato de que me sirvo para me haver com as demais coisas, — para vê-las, ouvi-las, aproximar-me ou fugir delas, manipulá-las, etc. E o instrumento ou organon   universal com que conto; por isso, meu corpo é para mim o corpo orgânico por excelência. Sem ele não poderia viver e na qualidade de ser a coisa do mundo cujo "ser para" me é mais imprescindível, é minha propriedade no sentido mais estrito e superlativo da palavra. Tudo isso Husserl o vê perfeitamente. Mas, por isso mesmo, surpreende que ele identifique a ideia do "corpo, que é meu" com o corpo do outro que somente é para mim através do meu corpo, do meu ver, palpar, ouvir, resistir-me (NOTA ABAIXO). A prova de que são quase totalmente diferentes é que as notícias que tenho do meu corpo são principalmente de dores e prazeres que ele me dá e que aparecem nele, de sensações internas de tensão ou afrouxamento muscular, etc. Em suma, meu corpo é sentido principalmente de dentro dele, é também o meu "dentro", é o intra-corpo, ao passo que do corpo alheio advirto só a sua exterioridade, a sua forma forânea, o seu fora. Vejo as minhas mãos, parte de meus braços e algumas outras porções da minha corporeidade; com uma das mãos toco a outra ou a minha coxa. Se com precisão compararmos o que efetivamente me é presente por fora do meu corpo, com aquilo que me é presente do outro, o balanço aparecerá com excessiva diferença. O corpo do outro quase se parece mais com o de alguns animais que também me são presentes de fora. Dir-se-á que temos espelhos em que nos vemos por fora, como vemos o corpo alheio. Em primeiro lugar, porém, o homem primitivo não tinha espelhos e, não obstante, existia para ele, da mesma forma que para nós, o Outro Homem. Dir-se-á: havia rios mansos, quietas lagoas, charcos em que podia ver-se. Além do mais, em muitos lugares hoje habitados por povos primitivos não há rios, lagoas nem sequer charcos, porque mal chove; é claro ainda que o Outro existia para eles desde crianças, antes de que se dedicassem à contemplação da sua própria forma refletida. Sabe-se também que a exploração e o subjugamento dos povos chamados selvagens se fez tanto à força de balas como à força de espelhos. Não havia dádiva que o primitivo mais agradecesse do que a do espelho, porque era para ele um objeto mágico que criava diante de seus olhos a imagem de um homem; ele, porém, não se reconhecia nesse homem. A maior parte desses primitivos não se tinha visto a si mesma e, consequentemente, não se reconhecia. No espelho cada um via precisamente. . . outro homem. Daqui teríamos de partir para entender bem o mito de Narciso que, originariamente, não teria consistido em que um jovem se deleitasse exclusivamente em contemplar a sua própria beleza espelhada na fonte, mas sim na mágica e súbita aparição de outro homem onde só havia um, — o eu que era Narciso. O Narciso original não se via a si próprio mas a outro e com ele convivia na mágica solidão da selva, inclinado sobre o manancial.


NOTA: Vejamos se consigo que se entenda a Husserl e a mim: Aqui, hic X corpo A / Ali, illic X corpo B

Meu corpo é o que sinto aqui, e isso que é para mim chamo corpo A. O corpo do Outro é o que vejo ali, illic — de onde vem ille, ele. É o corpo dele que chamo corpo B. Segundo Husserl, como posso deslocar-me e fazer desse ali um aqui, ’’ponho-me imaginariamente no lugar do outro corpo", — esta expressão é literalmente de Husserl —, e então o corpo B se converte em corpo A. Como se vê, o corpo A ou meu e o corpo B ou dele seriam iguais, salvo a diferença de lugar.


O erro de supor que transponho para o corpo do Outro o meu, e por isso advirto nele uma intimidade igual à minha, esse erro é com todo o rigor evidente, se repararmos em que o que me denuncia e revela o outro eu, o alter ego, não é tanto a forma do corpo como os seus gestos. A expressão que é o pranto, ou a irritação, ou a tristeza, não a descobri em mim mesmo mas primeiramente no outro e, do início significou para mim intimidades: dor, pesar, melancolia. Se tento ver-me choroso, irritado, aflito, num espelho, ipso facto o meu gesto correspondente se detém ou, pelo menos, se deforma e falseia.

Mal pode partir a aparição do Outro Homem do fato de que eu transponha imaginariamente o meu corpo para onde está o dele, já que às vezes o que me aparece não é um Outro que seja homem no sentido de varão, mas um Outro que é outra, que é a mulher, um Outro que não é Êle, mas Ela. A diferença surge desde a primeira aparição do corpo alheio, a qual já vem carregada de sexuação: é um corpo masculino ou feminino. Há casos em que o corpo presente é epiceno, e vivo em peculiar e notório equívoco.

A aparição d’Ela é um caso particular da aparição do Outro que nos faz ver a insuficiência de toda a teoria que, como a de Husserl, explique a presença do Outro como tal, por uma projeção da nossa pessoa íntima sobre o seu corpo. Notei já que a expressão alter ego, não é só paradoxal mas contraditória e, portanto, imprópria. Ego, em rigor, sou somente eu e, se o refiro a outro, tenho de modificar o seu sentido. Alter ego exige ser entendido analogicamente: há no Outro algo que é nele o que o ego é em mim. De comum entre ambos Ego, o meu e o analógico, há somente alguns componentes abstratos, e, enquanto abstratos, irreais. Real só é o concreto. Entre tais componentes comuns, há um que era, de início, o mais importante para o nosso estudo: a capacidade de responder-me, de reciprocar. Mas no caso da mulher ressalta especialmente a heterogeneidade entre o meu ego e o seu, porque a resposta d’Ela não é a resposta de um Ego abstrato, — o Ego, abstrato não responde, porque é uma abstração. A resposta d’Ela é já por si, de começo e sem mais nada, feminina e como tal a advirto. Acaba sendo, pois, claramente inválida a suposição de Husserl: a transposição do meu ego, que é irremediavelmente masculino, para o corpo de uma mulher, só poderia suscitar um caso extremo de virago, mas não serve para explicar o prodigioso descobrimento que é a aparição do ser humano feminino, completamente diferente de mim.

Dir-se-á, — e isto levou a muitos erros, não só teóricos mas práticos, políticos ("sufragistas", equiparação jurídica do homem e da mulher, etc), — que a mulher, uma vez que é um ser humano, não é "completamente diferente de mim". Ora, este erro provém de outro, muito mais amplo, causado por não se ter chegado a popularizar suficientemente uma reta ideia da relação entre o abstrato e o concreto. Em um objeto podemos isolar um de seus componentes, por exemplo: a cor. Esta operação de isolamento, em que fixamos nossa atenção em um componente da coisa, separando-o assim mentalmente dos demais componentes, com os quais inseparavelmente existe, é o que chamamos "abstração". Ao abstraí-lo, porém, do demais, extirpamos a sua realidade, não só porque não existe, nem pode existir isolado, — não há cor sem a superfície de forma e tamanho precisos sobre os quais se estende, — mas porque o seu conteúdo, mesmo como cor, é diferente, conforme seja essa forma e esse tamanho da superfície. Isto significa que os outros componentes re-operam sobre ele, dando-lhe o seu efetivo caráter. Assim, dizer que a mulher é um ser como eu, porque é capaz de responder-me, não é dizer nada real, porque nessas palavras desatendo e deixo fora o conteúdo das suas respostas, o peculiar como do seu responder.

Quando jovem, voltava eu em um grande transatlântico de Buenos Aires para a Espanha. Entre os companheiros de viagem, havia algumas senhoras norte-americanas, jovens e de grande beleza. Embora o meu trato com elas não chegasse a aproximar-se sequer da intimidade, era evidente que eu falava a cada uma delas como um homem fala a uma mulher que se acha na plenitude de seus atributos femininos. Uma delas se sentiu um pouco ofendida na sua condição de norte-americana. Pelo visto, Lincoln não se tinha esforçado em ganhar a guerra de Secessão para que eu, um jovem espanhol, me permitisse tratá-la como a uma mulher. As mulheres norte-americanas eram então tão modestas que acreditavam haver algo superior "a ser mulher". Daí o que me disse aquela: "reclamo de sua parte que me fale como a um ser humano". Não lhe pude senão responder: "senhora, não conheço essa personagem a que chama "ser humano". Conheço somente homens e mulheres. Como tenho a sorte de que a senhora não seja um homem, mas uma mulher, — certamente esplêndida, — me comporto tendo isso em vista". Aquela criatura havia sofrido, em algum College, a educação racionalista da época, e o racionalismo é uma forma de beatice intelectual que, ao pensar uma realidade, procura tê-la em conta o menos possível. Neste caso, tinha produzido a hipótese da abstração "ser humano". Devia levar-se sempre em conta que a espécie, — e a espécie é o concreto e real, — re-opera sobre o gênero e o especifica.

O fato de que as formas do corpo feminino se diferenciam bastante das do masculino não seria causa suficiente para que no corpo, descubramos a mulher. Mais ainda: essas formas diferenciais são as que, com frequência, nos induzem a interpretar equivocadamente sua pessoa íntima. Em compensação, qualquer das partes de seu corpo que menos se diferenciam das do nosso, nos manifestam, — no modo de com-presença já analisado por nós, — a sua feminidade. O fato é surpreendente, embora, em última instância, não mais que a aparição do Outro masculino.

De acordo com isso, estaria mais próximo da verdade dizer que não são as formas corporais, — que agora vamos qualificar de peculiarmente femininas, — as que nos assinalam um estranho modo de ser humano, profundamente diverso do masculino e que chamamos "feminidade"; muito antes pelo contrário: todas e cada uma das porções de seu corpo nos com-apresentam, nos fazem entrever a intimidade daquele ser que, de início, não é a mulher, e esta feminidade interna, uma vez advertida, ressuma pelo seu corpo e o feminiza. A advertência é paradoxal, mas me parece inegável: não é o corpo feminino que nos revela a "alma feminina", mas a "alma" feminina que nos faz ver feminino o seu corpo.

Perguntar-se-á: que caracteres primários entrevemos, enquanto nos é presente a mulher, que constituem para nós a sua feminidade elementar e que produzem esse efeito paradoxal de serem eles, — não obstante serem somente com-presentes, — os que impregnam de feminidade o seu corpo e fazem dele um corpo feminino? Não temos espaço aqui, para descrever todos e é bastante que eu assinale três:

1 — No mesmo instante em que vemos uma mulher, parece que temos diante de nós um ser cuja humanidade íntima se caracteriza, em contraste com a nossa varonil e a dos outros varões, por ser essencialmente confusa. Suspenda-se o lado pejorativo com que se costuma entender essa palavra. A confusão não é um defeito da mulher, como não o é do homem o carecer de asas. Menos ainda: porque pode ter sentido o desejar que o varão tivesse asas como o abutre e o anjo, mas não tem sentido o desejar que a mulher deixe de ser "substancialmente" confusa. Equivaleria a aniquilar a delícia que para o varão é a mulher, graças ao seu ser confuso. O varão, ao contrário, é feito de claridades. Tudo se dá nele com claridade. Entenda-se-, "claridade subjetiva"; não efetiva, objetiva claridade sobre o mundo e sobre os seus congêneres. Talvez tudo o que pensa é pura tolice, mas ele, dentro de si, se vê claro. Daí vem que, na intimidade varonil, tudo costuma ter linhas rigorosas e precisas, o que faz dele um ser cheio de rígidas arestas. A mulher, ao contrário, vive num perpétuo crepúsculo: não sabe bem se quer ou se não quer, se fará ou não fará, se se arrepende ou não se arrepende. Dentro da mulher não há meio-dia nem meia-noite: é crepuscular. Por isso, é constitutivamente secreta. Não porque não declare o que sente e lhe sucede, mas porque normalmente não poderia dizer o que sente ou lhe sucede. É para ela também um segredo. Tudo isso proporciona à mulher a suavidade de formas que produz a sua "alma" e que é para nós o tipicamente feminino. Diante das arestas do varão, a intimidade da mulher parece possuir somente delicadas curvas. A confusão, como a nuvem, tem formas redondas. A isso corresponde que no corpo da mulher a carne tenda sempre a finíssimas curvaturas, que é o que os italianos chamam morbidezza. No Hernâni, de Vitor Hugo, dona Sol tem uma frase infinitamente, encantadoramente feminina: "Hernâni, toi qui sais tout!" Dona Sol, não entende aqui, por "saber", conhecimento, ao contrário, com essas palavras, recorre da sua confusão feminina à varonil claridade de Hernâni, como a uma instância superior.

2 — Porque, com efeito, essa intimidade que descobrimos no corpo feminino e que vamos chamar de "mulher", se nos apresenta de início como uma forma de humanidade inferior à varonil. Este é o segundo caráter primário na aparição d’Ela. Em um tempo como o nosso, em que embora minguante, sofremos a tirania do mito "igualdade", em que, onde quer que seja, encontramos a mania   de crer que as coisas são melhores quando são iguais, a afirmação anterior irritará muita gente. Mas a irritação não é boa garantia da perspicácia. Na presença da Mulher, nós, os varões, pressentimos imediatamente uma criatura que, no nível pertencente à humanidade, é de uma classe vital algo inferior à nossa. Não existe nenhum outro ser que possua esta dupla condição: ser humano e sê-lo menos que o varão. Estriba nessa dualidade a delícia sem par que é, para o homem masculino, a mulher. A supra dita mania igualitária fez com que nos últimos tempos se procure minimizar o fato, — um dos fatos fundamentais no destino humano, — da dualidade sexual. Simone de Beauvoir, distinta escritora de Paris, capital da grafomania, escreveu uma obra volumosa sobre Le deuxieme sèxe. A essa senhora parece intolerável que se considere a mulher, — e que ela mesma se considere, — como constitutivamente referida ao varão e, portanto, não centrada em si mesma segundo, pelo visto, acontece ao varão. A senhora Beauvoir pensa que consistir em "referência a outro" é incompatível com a ideia de pessoa, a qual radica na "liberdade para si mesmo". Não se vê claro, porém, porque há de haver tal incompatibilidade entre ser livre e consistir em estar referido a outro ser humano. Ao cabo de contas não é frouxa a quantidade de referência à mulher que constitui o macho humano. Mas este, o varão, consiste de modo eminente em referência à sua profissão. A profissionalidade, — já no homem mais primitivo é, provavelmente, o traço mais masculino de todos, a ponto de que "não fazer nada", não ter profissão é sentido como afeminamento no varão. O livro da senhora Beauvoir, tão ubérrimo em páginas, nos deixa a impressão de que a autora, afortunadamente, confunde as coisas, e deste modo exibe no seu livro o caráter de confusão que nos assegura a autenticidade de seu ser feminino. Por outro lado, crer, como se desprende de seu escrito, que uma mulher é mais pessoa quando não "existe" preocupada com o homem, mas ocupada em escrever um livro sobre "Le deuxième Sèxe" já nos parece algo mais que simples confusão.

A dualidade dos sexos traz consigo o fato de que homens e mulheres estejam constituídos pela referência de uns a outros, a ponto de que, tanto naqueles como nestas, todo modo deficiente em viver referido ao outro sexo é o que, em cada caso, reclama explicação e justificação. Coisa diferente disto é que essa referência ao outro sexo, mesmo sendo constitutiva em ambos tem um grau eminente na mulher, ao passo que no homem fica mediatizada por outras referências. Com todas as modulações e reservas que a casuística nos faria ver, pode afirmar-se que o destino da mulher é "ser em vista do homem". Esta fórmula, porém, não origina erosão alguma na sua liberdade. O ser humano, à força de ser livre, o é diante e em face do seu destino. Pode aceitá-lo ou resistir a ele ou, o que dá no mesmo, pode sê-lo ou não sê-lo. Nosso destino não é somente o que temos sido e já somos, não é só o passado; ao contrário, vindo deste, se projeta aberto para o futuro. Esta fatalidade retrospectiva, — o que já somos, — não escraviza o nosso porvir, não pre-determina, inexorável, o que ainda não somos. Nosso ser futuro emerge de nossa liberdade, fonte incessante que brota sempre de si mesma. A liberdade pressupõe projetos de comportamento entre os quais cabe escolher e estes projetos só podem formar-se usando o passado, — nosso e alheio, — como um material que nos inspire novas combinações. O passado, — nosso destino, — não influi pois, sobre nós, em forma impositiva e mecânica, mas como fio condutor das nossas inspirações. Não permanecemos inexoravelmente inscritos nele que, ao contrário, nos lança, a todo instante, à livre criação do nosso ser futuro. Por isso é perfeita a fórmula dos antigos: Fata ducunt non trahunt, o destino dirige, não arrasta. Ora, por muito grande que seja o raio de nossa liberdade há nela um limite: não temos outro remédio senão guardar continuidade com o passado. Nada nos deixa ver mais claramente em que consiste essa ineludível continuidade com o passado do que quando o projeto que forjamos e que aceitamos consiste na negação radical de um passado. Vê-se então que uma das maneiras que o passado emprega para nos inspirar é o incitamento a que façamos o contrário daquilo que ele havia feito. Isso é o que se chamou desde Hegel   o "movimento dialético", em que cada novo passo consiste somente na mecânica negação do anterior. Certamente essa inspiração dialética é a forma mais estúpida da vida humana, aquela em que precisamente andamos mais perto de nos comportarmos com um automatismo quase físico. Exemplo deste modo é o que hoje se costuma chamar "arte atual", cujo princípio inspirador é simplesmente fazer o contrário daquilo que a arte sempre havia feito; portanto, propor-nos como arte algo que é, substancialmente, "não-arte".

Toda essa breve incrustação "filosófica" sobre passado e futuro, destino e liberdade, vem enfrentar a tendência de alguns "filósofos" atuais que convidam a mulher a desenhar o seu "ser no porvir" deixando de ser o que até agora foi, a saber, mulher, e tudo isso em nome da liberdade e da ideia de pessoa. Ora, isso que a mulher foi no passado, a sua feminidade, não procede do fato de que a sua liberdade e a sua pessoa tenham sido negadas nem pelos varões, nem por uma fatalidade biológica; é, ao contrário, o resultado de uma série de criações livres, de férteis inspirações devidas tanto a ela como ao próprio homem. Para o ser humano, a dualidade zoológica dos sexos não é, como não o é o resto das condições infra-humanas, uma imposição inexorável, mas justamente ao contrário, um tema para inspiração. Aquilo a que chamamos "mulher" não é um produto da natureza, mas uma invenção da história, como o é a arte. Por isso são tão pouco fecundas, tão supérfluas as quantiosas páginas que a senhora Beauvoir dedica à biologia dos sexos. Só quando se trata de imaginar a origem do homem, é ineludível ter à vista os fatos que a biologia da evolução hoje nos apresenta, mesmo estando seguros de que amanhã nos apresentará outros. Mas, uma vez que o homem é homem, entramos num mundo de liberdade e criação. Muito mais fértil do que estudar a mulher zoologicamente seria contemplá-la como um gênero literário ou uma tradição artística.

Voltemos, pois, — sem por isso sentir um rubor que seria snobismo, — a falar com toda tranquilidade, da mulher como "sexo fraco". Mais ainda: proclamemo-lo com sentido mais radical. Disse que, junto ao caráter de confusão, o outro caráter primário com que a mulher nos aparece é a sua classe vital inferior no nível humano. Esta última qualificação só serve para nos introduzir no fenômeno de que se trata; e não é adequada, porque implica uma comparação com o varão e nada é, na sua própria realidade, uma comparação. Não se trata, pois, de que a mulher nos pareça, em comparação com o varão, menos forte vitalmente do que este. Ao menos por enquanto não há falar de mais ou de menos, mas dizer que, ao vermos uma mulher, o que vemos consiste em debilidade. Isto é tão palmar que, por essa mesma razão, o omitimos quando falamos daquilo que é a mulher. Quando Aristóteles   diz que a mulher é um homem enfermo, não é verossímil que se refira a seus periódicos padecimentos, mas precisamente a esse caráter constitutivo de debilidade. Mas chamar a este caráter "enfermidade" é procurar uma expressão secundária que supõe a sua comparação com o homem são.

Neste caráter patente de debilidade se funda a sua inferior classe vital. Mas, como não podia deixar de ser, essa inferioridade é fonte e origem do valor peculiar que a mulher possui referida ao homem, porque graças a ela, a mulher nos torna felizes e é feliz ela própria, é feliz sentindo-se fraca. Com efeito, só um ser inferior ao varão, pode afirmar radicalmente o ser básico deste, — não os seus talentos, triunfos ou êxitos, mas a condição elementar da sua pessoa. O maior admirador que tenhamos, dos nossos dotes, não nos corrobora e confirma como a mulher que se enamora de nós. E isso porque, na verdade, só a mulher sabe e pode amar, isto é, desaparecer em outro.

III — A confusão do ser feminino nos aparece junto com a sua fraqueza e, de certo modo, procedente desta, mas a fraqueza, por sua vez, se nos torna com-presente no terceiro caráter primário que anunciei que ia tentar descrever.

O ego feminino é tão radicalmente diverso do nosso varonil que, desde o primeiro instante revela essa diferença em uma das coisas mais elementares que podem surgir: em que a relação desse ego com o seu corpo é diferente da relação em que o ego masculino está com o seu.

Já fiz notar anteriormente a incongruência de Husserl, quando afirmava que na percepção do outro identificamos o nosso corpo com o dele. Nosso corpo nos é conhecido sobretudo de dentro e o do próximo, de fora. São fenômenos heterogêneos.

Esquece-se demais que o corpo feminino é dotado de uma sensibilidade interna mais viva que o corpo do homem, isto é, que as nossas sensações orgânicas intra-corpóreas são vagas e como que surdas, comparadas com as da mulher. Vejo neste fato uma das raízes de que emerge, sugestivo, gentil e admirável o esplêndido espetáculo da feminidade.

A relativa hiperestesia das sensações orgânicas da mulher determina que seu corpo exista para ela, mais do que o do homem, para ele. Nós, os varões, normalmente esquecemos o nosso irmão corpo, não sentimos que o temos senão na hora frígida ou tórrida da extrema dor ou do extremo prazer. Entre o nosso eu, puramente psíquico, e o mundo exterior, nada parece interpor-se. Na mulher, ao contrário, a atenção é constantemente solicitada pela vivacidade de suas sensações intra-corporais: sente em todas as horas o seu corpo como interposto entre o mundo e o seu eu, leva-o sempre diante de si, ao mesmo tempo como escudo que defende e como refém vulnerável. As consequências são claras: toda a vida psíquica da mulher está mais fundida com o seu corpo do que no homem; isto é, a sua alma é mais corporal mas, vice-versa, o seu corpo convive mais constante e estreitamente com o seu espírito,- isto é, seu corpo está mais transido de alma. Com efeito, a pessoa feminina oferece um grau de penetração entre o corpo e o espírito muito mais elevado do que a varonil. No homem, comparativamente cada um costuma ir para o seu lado; corpo e alma sabem pouco um do outro e não são solidários; atuam até como irreconciliáveis inimigos.

Creio que, nessa observação, se pode achar a causa do fato, eterno e enigmático, que cruza a história humana de ponta a ponta e do qual não se deram senão explicações estúpidas ou superficiais: refiro-me à imortal propensão da mulher ao adorno e enfeite do seu corpo. Vista à luz da ideia que exponho, nada mais natural e, a um tempo inevitável. Sua nativa contextura fisiológica impõe à mulher o hábito de fixar-se, de atender ao seu corpo, que vem a ser o objeto mais próximo na perspectiva do seu mundo. E como a cultura não é senão a ocupação reflexiva sobre aquilo a que a nossa atenção se dirige com preferência, a mulher criou a egrégia cultura do corpo, que historicamente começou pelo adorno, continuou pelo asseio e acabou pela cortesia, genial invento feminino que é, em resumo, a fina cultura do gesto (Utilizei nestes três últimos parágrafos parte do meu estudo "A percepção do próximo" [Em Obras Completas, tomo VI.]).

O resultado dessa atenção constante que a mulher presta a seu corpo é que este nos aparece desde o início como impregnado, como cheio todo ele de alma. Nisso se funda a impressão de fraqueza que a sua presença suscita em nós, porque, em contraste com a sólida e firme aparência do corpo, a alma é algo trêmulo, a alma é algo fraco. Enfim, a atração erótica que produz no varão não é, como sempre nos disseram os ascetas, — cegos para tais assuntos, — suscitada pelo corpo feminino enquanto corpo; ao contrário, desejamos a mulher porque o corpo d’Ela é uma alma.


Ver online : ORTEGA Y GASSET