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Michel Henry (GP:73-74) – espírito (mens)

sexta-feira 14 de julho de 2023, por Cardoso de Castro

Desde a Regra I encontramos estes termos associados a outros que lhe são equivalentes: intellectus  , bona mens  , naturale rationis lumen, humana Sapientia, universalis Sapientia, scientia, e, na Regra II, cognitio certa et evidens – e o seu conteúdo é claro: é a evidência, ou melhor, a sua condição, a luz natural, isto é, transcendental   – a humana Sapientia é imediatamente dada como universalis Sapientia – que é visada. Essa luz é transcendental enquanto fundamento de todo conhecimento possível, de toda ciência, de sua evidência e de sua certeza, ela constitui identicamente, na efetividade de sua fenomenalidade própria, a essência da ratio e a do intellectus. O contexto da Segunda Meditação confirma essa interpretação. A elucidação do conceito de espírito – mens   – faz com que este apareça como o poder fundamental de nosso conhecimento e tal poder é, efetivamente, um intellectus, uma inspectio do espírito – abstração feita de toda contribuição específica do sentido ou da imaginação – ou ainda, uma ratio, caso se entenda por ela a capacidade de o espírito aperceber as ideias que estão nele como ideias puras, quer se trate da ideia de extensão, quer se trate [73] da ideia de substância pensante, quer dizer, da ideia adequada de homem.

Mas tais considerações estão presentes apenas no fim da Meditação ou das Regras. A Primeira Meditação e o início da Segunda, todo o processo fenomenológico de elucidação que leva à posição do sum, ignora a definição de mens como intellectus, ou melhor, a rejeita desde o seu fundamento. Um tal processo, vale lembrar, é o da dúvida que anula o conjunto dos saberes antropológicos ou científicos tão-somente porque faz estremecer o seu fundamento comum, a saber, essa luz transcendental, essa Sapientia universalis da qual a Regra I dizia que “permanece sempre una e sempre a mesma, por mais diferentes que sejam os objetos aos quais ela se aplica, e que não recebe mais variação desses objetos, do que a luz do sol da variedade de coisas que ilumina” [1]. O que é atingido pela redução e posto por ela entre parênteses é, portanto, o horizonte ontológico reconhecido em sua heterogeneidade e em sua irredutibilidade ao ente ao mesmo tempo que sua condição de seu conhecimento, é a possibilidade última de entender e de compreender, de aperceber conteúdos ideais. Enquanto a dúvida natural se apoiava sobre razões, aqui é o conjunto delas que varre a dúvida metafísica e a ratio sofre, por sua vez, um estremecimento em seus alicerces. Se o pensamento deve constituir o fundamento estável e absoluto, tal como busca o cartesianismo do começo, então a sua definição como “animus  , intelectus sive ratio” é decididamente impossível.

Do mesmo modo, uma tal definição é secretamente tributária de uma outra problemática que não a do cogito  , problemática que reaparece no final da Segunda Meditação. A mens não é mais, então, examinada por Descartes   em si mesma, na imediatidade de seu aparecer, mas como a condição do conhecimento do corpo, ou melhor, como a essência deste: “nós conhecemos o corpo tão-somente pela faculdade de entender (a solo intellectu) que se encontra em nós” [2]. É justamente o “conhecimento do corpo”, na medida em que encontra o seu fundamento na ek-stasis do ver e enquanto ver puro – “inspeção do espírito” –, é a essência do videre que está circunscrita, caracterizada, elucidada durante toda análise do pedaço de cera ou dos homens que passam na rua com seus chapéus: uma tal análise, sabe-se, não é justamente a do corpo, de um corpo qualquer, da extensão, mas, pelo contrário, a do conhecimento do corpo, isto é, mais precisamente, da análise do entendimento. Mas o “conhecimento do corpo” – que permanece, inclusive, problemático em si mesmo, não podendo como tal, constituir o começo –, remete necessária e [74] incansavelmente [3] ao “conhecimento da alma” da qual a essência mais originária exibe-se no cogito. O fato de que a mens cartesiana não seja redutível ao intueri do intelectus e da ratio, é o que atestam não somente as teses mais fundamentais de Descartes, mas ainda este texto: “não me compete duvidar de que o espírito [mens], assim que é infundido no corpo da criança, comece a pensar e que, desde esse instante, saiba que possa pensar (simulque sibi suæ cogitationis conscia sit)” [4]. A menos que suponhamos que o ser mais essencial do homem consiste na atividade matemática e que, desde o ventre de sua mãe, esteja ocupado em preparar o seu ingresso na escola Politécnica, é preciso realmente reconhecer que o pensamento, aqui em questão, não é um entendimento stricto sensu, mas a revelação sob sua forma mais originária, a imanência muda de seu primeiro ser a si na afetividade do puro sentir-se a si mesmo. [MHPsique:73-74]


Ver online : Michel Henry


[1FA, I, p. 78; AT, X, p. 360.

[2FA, II, p. 429 ; AT, IX, p. 26.

[3Esta remissão não é somente constante no fim da Segunda Meditação, ela é reafirmado nas Repostas às Quintas Objeções: “De onde se vê claramente que não há coisa pela qual se conheça tanto atributos quanto nosso espírito, porque ainda que se conheça deles nas outras coisas, pode-se tanto contá-las no espírito daquele que os conhece; e portanto sua natureza é mais conhecida do que aquela de alguma outra coisa” (FA, II, p. 802; AT, VIII, p. 360). Cf. também Principes, II, p. II (FA, III, p. 97; AT, IX, II, p. 29).

[4Réponses aux Quatrièmes Objections, FA, II, p. 691 ; AT, VIII, p. 246.