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Merleau-Ponty (1945/2006:496-499) – não há causalidade entre sujeito e corpo, mundo, sociedade

quinta-feira 15 de fevereiro de 2024, por Cardoso de Castro

Ribeiro de Moura

Mais uma vez, é evidente que não é concebível nenhuma relação de causalidade entre o sujeito e seu corpo, seu mundo ou sua sociedade. Sob pena de perder o fundamento de todas as minhas certezas, não posso pôr em dúvida aquilo que minha presença a mim mesmo me ensina. Ora, no momento em que me dirijo a mim mesmo para me descrever, entrevejo um fluxo anônimo, um projeto global em que ainda não existem “estados de consciência” nem, com mais razão ainda, qualificações de qualquer tipo. Não sou para mim mesmo nem “ciumento”, nem “curioso”, nem “corcunda” nem “funcionário”. Frequentemente nos espantamos de que o enfermo ou o doente possam suportar-se. E que para si mesmos eles não são enfermos ou moribundos. Até o momento do coma, o moribundo é habitado por uma consciência, ele é tudo aquilo que vê, ele tem este meio de escape. A consciência nunca pode objetivar-se em consciência-de-doente ou consciência-de-enfermo e, mesmo se o velho se queixa de sua velhice ou o enfermo de sua enfermidade, eles só podem fazê-lo quando se comparam aos outros ou quando se veem pelos olhos dos outros, quer dizer, quando têm de si mesmos uma [582] visão estatística e objetiva, e essas queixas nunca são inteiramente de boa-fé: regressando ao interior de sua consciência, cada um se sente além de suas qualificações e no mesmo instante se resigna a elas. Elas são o preço que pagamos, sem nem mesmo pensar nisso, para ser no mundo, uma formalidade sem problemas. Daí provém o fato de que podemos falar mal de nosso rosto e que todavia não desejaríamos trocá-lo por um outro. Ao que parece, nenhuma particularidade pode ser ligada à insuperável generalidade da consciência, nenhum limite pode ser imposto a esse poder desmedido de evasão. Para que algo pudesse determinar-me do exterior (nos dois sentidos da palavra determinar), seria preciso que eu fosse uma coisa. Minha liberdade e minha universalidade não poderiam admitir eclipse. É inconcebível que eu seja livre em algumas de minhas ações e determinado em outras: o que seria esta liberdade ociosa que deixa os determinismos funcionarem? Se se supõe que ela se abole quando não age, de onde ela renasceria? Se, por uma circunstância improvável, eu tivesse podido fazer-me coisa, como em seguida eu tornaria a fazer-me consciência? Se, por uma única vez, sou livre é porque não faço parte das coisas, e é preciso que eu o seja sem cessar. Se uma única vez minhas ações deixam de ser minhas, elas nunca voltarão a sê-lo; se perco meu poder sobre o mundo, não o recuperarei. Também é inconcebível que minha liberdade possa ser atenuada; não se poderia ser um pouco livre, e, como se diz frequentemente, se motivos me inclinam em uma direção, de duas coisas uma: ou eles têm a força de me fazer agir, e então não existe liberdade, ou eles não a têm, e então ela é inteira, tão grande nas piores torturas quanto na paz da minha casa. Deveríamos então renunciar não apenas à ideia de causalidade, mas ainda à de motivação. O pretenso motivo não pesa em minha decisão, ao contrário é minha decisão que lhe empresta sua força. Tudo o que “sou” graças à natureza ou à história — corcunda, belo ou judeu [583] — nunca o sou inteiramente para mim mesmo, como o explicávamos há pouco. E sem dúvida eu o sou para outrem, mas permaneço livre de pôr outrem como uma consciência cujas visões me alcançam até em meu ser, ou ao contrário como um simples objeto. É verdade ainda que esta própria alternativa é um constrangimento: se sou feio, tenho a escolha de ser reprovado ou de reprovar os outros, deixam-me livre entre o masoquismo e o sadismo, e não livre para ignorar os outros. Mas essa alternativa, que é um dado da condição humana, não o é para mim enquanto pura consciência: ainda sou eu quem faz outrem ser para mim e quem nos faz um e outro sermos como homens. Aliás, mesmo se o ser humano me fosse imposto, apenas a maneira de ser sendo deixada à minha escolha, a se considerar esta própria escolha e sem distinção do pequeno número de possíveis, ela ainda seria uma escolha livre. Se se diz que meu temperamento me inclina mais para o sadismo ou antes para o masoquismo, trata-se ainda de uma maneira de falar, pois meu temperamento só existe para o conhecimento secundário de mim mesmo que tenho pelos olhos de outrem, e contanto que eu o reconheça, o valorize e, neste sentido, o escolha. O que engana sobre isso é o fato de que frequentemente procuramos a liberdade na deliberação voluntária que examina alternadamente os motivos e parece render-se ao mais forte ou ao mais convincente. Na realidade, a deliberação decorre da decisão, é minha decisão secreta que faz os motivos aparecerem e nem mesmo se conceberia o que pode ser a força de um motivo sem uma decisão que ele confirma ou contraria. Quando renunciei a um projeto, repentinamente os motivos que eu acreditava ter para mantê-lo tornam a cair sem força. Para restituir-lhes uma força, é preciso que eu faça o esforço de reabrir o tempo e de me recolocar no momento em que a decisão ainda não estava tomada. Mesmo enquanto delibero, já é por um esforço que consigo suspender o tempo, manter aberta [584] uma situação que sinto fechada por uma decisão que está ali e à qual resisto. É por isso que tão frequentemente, após ter renunciado a um projeto, experimento uma libertação: “Afinal, eu não me prendia tanto a ele”, só havia debate quanto à forma, a deliberação era uma paródia, eu já tinha decidido contra. Frequentemente cita-se a impotência da vontade como um argumento contra a liberdade. E com efeito, se posso voluntariamente adotar uma conduta e me improvisar guerreiro ou sedutor, não depende de mim ser guerreiro ou sedutor com facilidade e “naturalidade”, quer dizer, sê-lo verdadeiramente. Mas também não se deve procurar a liberdade no ato voluntário que é, segundo seu próprio sentido, um ato fracassado. Só recorremos ao ato voluntário para ir contra nossa verdadeira decisão, e como que com o propósito de provar nossa impotência. Se verdadeiramente tivéssemos assumido a conduta do guerreiro ou do sedutor, seríamos guerreiro ou sedutor. Mesmo aquilo que se chama de obstáculos à liberdade são na realidade desdobrados por ela. Um rochedo intransponível, um rochedo grande ou pequeno, vertical ou oblíquo, isso só tem sentido para alguém que se proponha a transpô-lo, para um sujeito cujos projetos recortem essas determinações na massa uniforme do em si e façam surgir um mundo orientado, um sentido das coisas. Portanto, finalmente não há nada que possa limitar a liberdade, senão aquilo que ela mesma determinou como limite por suas iniciativas, e o sujeito só tem o exterior que ele se dá. Como é ele que, surgindo, faz aparecer sentido e valor nas coisas, e como nenhuma coisa pode atingi-lo senão fazendo-se, por ele, sentido e valor, não existe ação das coisas sobre o sujeito, só existe uma significação (no sentido ativo), uma Sinngebung centrífuga. A escolha parece ser entre uma concepção cientificista da causalidade, incompatível com a consciência que temos de nós mesmos, e a afirmação de uma liberdade absoluta sem exterior. Impossível marcar um ponto para além do qual [585] as coisas deixariam de ser έφ᾿ἤμιν. Ou estão todas em nosso poder, ou nenhuma.

Original

Encore une fois, il est évident qu’aucun rapport de causalité n’est concevable entre le sujet et son corps, son monde ou sa société. Sous peine de perdre le fondement de toutes mes certitudes, je ne peux révoquer en doute ce que m’enseigne ma présence à moi-même. Or, à l’instant où je me tourne vers moi-même pour me décrire, j’entrevois un flux [1] anonyme, un projet global où il n’y a pas encore d’« états de conscience », ni à plus forte raison de qualifications d’aucune sorte. Je ne suis pour moi-même ni « jaloux », ni « curieux », ni « bossu », ni « fonctionnaire ». On s’étonne souvent que l’infirme ou le malade puissent se supporter. C’est qu’ils ne sont pas pour eux-mêmes infirme ou mourant. Jusqu’au moment du coma, le mourant est habité par une conscience, il est tout ce qu’il voit, il a ce moyen d’échappement. La conscience ne peut jamais s’objectiver en conscience-de-malade ou conscience-d’infirme, et, même si le vieillard se plaint de sa vieillesse ou l’infirme de son infirmité, ils ne peuvent le faire que quand ils se comparent à d’autres ou quand ils se voient par les yeux des autres, c’est-à-dire quand ils prennent d’eux-mêmes une vue statistique et objective, et ces plaintes ne sont jamais tout à fait de bonne foi : revenu au cœur de sa conscience, chacun se sent au-delà de ses qualifications et du coup s’y résigne. Elles sont le prix que nous payons, sans même y penser, pour être au monde, une formalité qui va de soi. De là vient que nous pouvons dire du mal de notre visage et que cependant nous ne voudrions pas le changer pour un autre. À l’insurmontable généralité de la conscience, aucune particularité ne peut, semble-t-il, être attachée, à ce pouvoir démesuré d’évasion aucune limite imposée. Pour que quelque chose du dehors pût me déterminer (aux deux sens du mot), il faudrait que je fusse une chose. Ma liberté et mon universalité ne sauraient admettre d’éclipse. Il est inconcevable que je sois libre dans certaines de mes actions et déterminé dans d’autres : que serait cette liberté oisive qui laisse jouer les déterminismes ? Si l’on suppose qu’elle s’abolit quand elle n’agit pas, d’où renaîtra-t-elle ? Si par impossible j’avais pu me faire chose, comment dans la suite me referais-je conscience ? Si, une seule fois, je suis libre, c’est que je ne compte pas au nombre des choses, et il faut que je le sois sans cesse. Si mes actions une seule fois cessent d’être miennes, elles ne le redeviendront jamais, si je perds ma prise sur le monde, je ne la retrouverai pas. Il est inconcevable aussi que ma liberté puisse être atténuée ; on ne saurait être un peu libre, et si, comme on dit souvent, des motifs m’inclinent dans un sens, c’est de deux choses l’une : ou bien ils ont la force de me faire agir, et alors il n’y a pas de liberté, ou bien ils ne l’ont pas, et alors elle est entière, aussi grande dans les pires tortures que dans la paix de ma maison. Nous devrions donc renoncer non seulement à l’idée de causalité, mais encore à celle de motivation [2]. Le prétendu motif ne pèse pas sur ma décision, c’est au contraire ma décision qui lui prête sa force. Tout ce que je « suis » par le fait de la nature ou de l’histoire, — bossu, beau ou Juif, — je ne le suis jamais tout à fait pour moi-même, comme nous l’expliquions tout à l’heure. Et sans doute je le suis pour autrui, mais je demeure libre de poser autrui comme une conscience dont les vues m’atteignent jusque dans mon être, ou au contraire comme un simple objet. Il est vrai encore que cette alternative elle-même est une contrainte : si je suis laid, j’ai le choix d’être un réprouvé ou de réprouver les autres, on me laisse libre entre le masochisme et le sadisme, et non pas libre d’ignorer les autres. Mais cette alternative, qui est une donnée de la condition humaine, n’en est pas une pour moi comme pure conscience : c’est encore moi qui fais être autrui pour moi et qui nous fais être l’un et l’autre comme hommes. D’ailleurs, même si l’être humain m’était imposé, la manière d’être étant seule laissée à mon choix, à considérer ce choix lui-même et sans acception du petit nombre des possibles, ce serait encore un choix libre. Si l’on dit que mon tempérament m’incline davantage au sadisme ou plutôt au masochisme, c’est encore une manière de parler, car mon tempérament n’existe que pour la connaissance seconde que je prends de moi-même quand je me vois par les yeux d’autrui, et pour autant que je le reconnais, le valorise et, en ce sens, le choisis. Ce qui nous trompe là-dessus, c’est que nous cherchons souvent la liberté dans la délibération volontaire qui examine tour à tour les motifs et paraît se rendre au plus fort ou au plus convaincant. En réalité, la délibération suit la décision, c’est ma décision secrète qui fait paraître les motifs et l’on ne concevrait pas même ce que peut être la force d’un motif sans une décision qu’il confirme ou contrarie. Quand j’ai renoncé à un projet, soudain les motifs que je croyais avoir d’y tenir retombent sans force. Pour leur en rendre une, il faut que je fasse l’effort de rouvrir le temps et de me replacer au moment où la décision n’était pas encore prise. Même pendant que je délibère, c’est déjà par un effort que je réussis à suspendre le temps, à maintenir ouverte une situation   que je sens close par une décision qui est là et à laquelle je résiste. C’est pourquoi, si souvent, après avoir renoncé à un projet, j’éprouve une délivrance : « Après tout, je n’y tenais pas tant », il n’y avait débat que pour la forme, la délibération était une parodie, j’avais déjà décidé contre. On cite souvent comme un argument contre la liberté l’impuissance de la volonté. Et en effet, si je peux volontairement adopter une conduite et m’improviser guerrier ou séducteur, il ne dépend pas de moi d’être guerrier ou séducteur avec aisance et « naturel », c’est-à-dire de l’être vraiment. Mais aussi ne doit-on pas chercher la liberté dans l’acte volontaire, qui est, selon son sens même, un acte manqué. Nous ne recourons à l’acte volontaire que pour aller contre notre décision véritable, et comme à dessein de prouver notre impuissance. Si nous avions vraiment assumé la conduite du guerrier ou du séducteur, nous serions guerrier ou séducteur. Même ce qu’on appelle les obstacles à la liberté sont en réalité déployés par elle. Un rocher infranchissable, un rocher grand ou petit, vertical ou oblique, cela n’a de sens que pour quelqu’un qui se propose de le franchir, pour un sujet dont les projets découpent ces déterminations dans la masse uniforme de l’en soi et font surgir un monde orienté, un sens des choses. Il n’est donc rien finalement qui puisse limiter la liberté, sinon ce qu’elle a elle-même déterminé comme limite par ses initiatives et le sujet n’a que l’extérieur qu’il se donne. Comme c’est lui, en surgissant, qui fait paraître sens et valeur dans les choses, et comme aucune chose ne peut l’atteindre qu’en se faisant par lui sens et valeur, il n’y a pas d’action des choses sur le sujet, il n’y a qu’une signification (au sens actif), une Sinngebung centrifuge. Le choix semble être entre une conception scientiste de la causalité, incompatible avec la conscience que nous avons de nous-mêmes, et l’affirmation d’une liberté absolue sans extérieur. Impossible de marquer un point au-delà duquel les choses cesseraient d’être έφ᾿ἤμιν. Toutes sont en notre pouvoir ou aucune.


Ver online : Maurice Merleau-Ponty


MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. Tr. Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

Merleau-Ponty, Maurice. Phénoménologie de la perception. Paris: Gallimard, 1945


[1Au sens que nous avons, avec HUSSERL, donné à ce mot.

[2Voir J.-P. SARTRE, L’Être et le Néant, pp. 508 et suivantes.