Página inicial > Fenomenologia > Marques Cabral (2018:37-41) – o luto

Cartografias do luto

Marques Cabral (2018:37-41) – o luto

“Não aprendí a dizer adeus”

quarta-feira 7 de junho de 2023, por Cardoso de Castro

O que me interessa, contudo, é afirmar com Agostinho   que a morte de um amigo mata algo em nós, sem precisar sublimar essa morte por meio da relação com um Deus que não se move.

Admirava-me de que os restantes mortais vivessem, visto que aquele, que eu amava como se não houvera de morrer, tinha morrido e mais me admirava que eu continuasse a viver depois de ele morrer, visto que eu era o outro ele. Bem disse alguém, em relação a um amigo seu, que ele era metade da sua alma. Porque eu sentia que a minha alma e a alma dele eram uma só alma em dois corpos, e por isso a vida era para mim um horror, porque eu não queria viver por metade, e talvez por isso temia morrer, para que não morresse totalmente aquele que eu muito amara. [1]

Agostinho   experimentou a radicalidade do luto: a morte do outro que amo me mata, ainda que eu continue vivo. Seu argumento: seguindo os pensamentos de Horácio e Ovídio, Agostinho entende a amizade como a transformação de duas vidas efetivamente diferentes em existências animadas por uma só alma. Por isso, quando morre meu amigo, eu também morro, pois somos dois corpos vivificados por uma só alma. [37] Daí a perplexidade de Agostinho: como podem os mortais continuarem a viver, quando morre um amigo?! Para ele, isso era um problema seriíssimo. Isso porque o sofrimento proveniente do luto assinalava algo inerente à pequenez humana: o amor a um ser finito, como se ele fosse imortal. Solução: é preciso amar o outro ser humano por causa de Deus. Daí Agostinho dizer a Deus: “A ti ninguém te perde, a não ser quem te abandona”. [2] Solução estranha. Se Deus é imortal, nosso amor a Ele não nos faz sofrer, pois não o perdemos, já que Ele não é finito. Por isso, a verdadeira amizade se manifesta em nossa relação com Deus. As outras amizades só têm sentido, se estiverem ancoradas em Deus. Se amamos o amigo finito por meio do nosso amigo eterno, então não sofremos, não morremos com a morte de quem amamos. Daí as exigências de Agostinho:

Se te agradam as almas, sejam amadas em Deus, porque também elas são mutáveis e é nele que, fixas, recebem estabilidade: de outro modo passariam e pereceriam.
 
(…) O bem [finito] que amais dele [de Deus] procede: mas, na medida em que é por relação a ele, é bom e suave; mas será justamente amargo, porque é injustamente amado, tudo aquilo que provém dele, quando ele é abandonado. [3]

Ora, se o amor a Deus é a resposta mais pertinente ao luto e se esse amor não nos permite sofrer com a morte de quem amamos, então por que o evangelho de João registra, no episódio da morte de Lázaro, que “Jesus chorou” (Jo 11, 35)? Gostaria de saber se Agostinho consideraria Jesus alguém fraco de espírito, como pensa ele mesmo ter sido antes da conversão, quando chorou pela morte de seu amigo.

Não posso levar a sério a sublimação divina do luto segundo o pensamento de Agostinho. Para mim, é mais do que óbvio que o Deus transcendente não é refúgio contra o luto. O importante é entender como o luto pode ser experimentado como índice de experiência divina. Não vou me estender aqui nesse ponto. O que me interessa, contudo, é afirmar com Agostinho que a morte de um amigo mata algo em nós, sem precisar sublimar essa morte por meio da relação com um Deus que não se move. Isso porque a sua morte, meu amigo e Mestre, matou algo em mim e isso não significa que, se estiver sob o manto de Deus, não sentirei minha vida ser esgarçada com a sua saída desta existência. Por isso, não posso fugir da nossa morte: da sua e da minha. Fiquei pensando, então, nos discursos religiosos sobre a morte de quem amamos e o luto por ela gerado. Talvez eles pudessem me confortar nessa hora. Assim como você, fui doutrinado para saber de cor textos bíblicos sobre a morte. Deveria ter sempre o que dizer para as famílias enlutadas, caso presenciasse ou soubesse da morte de alguém. “Ainda que eu andasse pelo vale das sombras da morte, não temeria mal algum, porque tu estás comigo” (SI 23, 4). “Na casa de meu Pai há muitas moradas; se não fosse assim, eu vô-lo teria dito. Vou preparar-vos lugar” (Jo 14, 2). “Porque para mim o viver é Cristo, e o morrer é lucro” (Fl1, 21). Eis alguns dos textos que decorei para ajudar pessoas enlutadas. Será que isso aplaca e resolve a dor do meu luto e do luto delas?

É mais do que óbvio que a utilização desses textos em contexto de luto visa a acentuar a famosa vida post-mortem  . A velha e sempre presente imortalidade da alma, que na Grécia clássica teve tanta força (sobretudo após Platão), parece ser a saída para o luto. Quem duvidaria disso? Se a vida continua, ainda que o corpo morra, então a morte é uma ilusão e o reencontro com o ente amado aparece como um sol a iluminar nossos horizontes. Que se adicione a esse pensamento a [39] noção cristã de céu. Agora, tudo parece fazer sentido. Céu: lugar de bonança; vida mais viva que a nossa vida; fonte contínua de felicidade; casa de Deus, ou melhor, presença plena de Deus mesmo; vida sem choro nem ranger de dentes; posse perfeita de uma vida mais que perfeita. Mas, o céu não para aí. Ele salvaguarda reencontros definitivos. Se meu pai está no céu, então, quando morrer, poderei reencontrá-lo e dispor de sua presença constante. Se o céu é a casa de Deus e lá há muitas moradas, então, como não desejar um pequeno lugar para dispor eternamente da presença daqueles que amamos? Supõe-se, portanto, que as lágrimas daqueles que choram a morte de uma pessoa amada sejam enxugadas porque a vida para além da vida liberta-nos do peso da morte de quem amamos. O antídoto contra a morte seria, então, a outra vida, uma vida que não conhece a morte. Essa é a crença de pastores e padres, de espíritas e espiritualistas, que, ainda que tenham doutrinas diferentes, pensam ser o pós-morte o remédio contra o luto e o sofrimento de quem fica sem aquele/a que ama.

Vou a um enterro. Deparo-me com o caixão de uma pessoa amada. Ali não está meramente um corpo sem vida. Se choro, é porque ali se apresenta a vida de alguém que se ausenta, mas continua me atravessando de alguma forma. Um defunto não é um cadáver nas mãos de estudantes de anatomia: massa sem vida, coisa com aspecto humano, mas sem história e sem nome. O defunto sempre traz consigo os rastros de uma história que teima em continuar a dar as caras, ainda quando o corpo ali diante de nossos olhos não mais se movimenta. A vida do morto não está ausente quando encaramos o defunto. É que o defunto fala, ele sempre tem algo a dizer. Ele nos interpela, nos provoca, nos recorda, nos acusa e até nos culpa ou nos vitimiza. Ele é a memória de uma vida que nos importa, nos concerne e nos afeta. Por isso, diante de um defunto de uma pessoa que amamos, choramos, nos culpamos, ressentimos, acusamos, agradecemos, mas não somos indiferentes. [40] Se não for assim, não há luto. Só há luto quando não há indiferença em relação à presença da vida de um morto. Não só isso. Enlutamos quando sofremos com a interpelação da vida presente de alguém ausente que nos concerne. Por isso, é esta vida que está em jogo quando enlutamos. A dor de ser continuamente interpelado pela vida de alguém que morreu e que nos concerne assinala que nosso luto diz respeito à nossa vida. Daí a pergunta: se um pastor ou padre aparece diante do caixão de alguém que amo e começa a falar sobre o céu e a outra vida, meu sofrimento é anulado ou mesmo abrandado porque ele me diz que a morte, em verdade, não passa de uma ilusão? Claro que não. Que me desculpem os religiosos em geral: só posso chorar a morte de quem amo, porque o céu nunca será suficiente para suturar minha ferida. Se estou enlutado, mando o céu para o inferno.


Ver online : Alexandre Marques Cabral


[1Agostinho, Santo. Confissões. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa Moeda, 2004, Livro IV, VI, 11.

[2Ibidem, Livro 4, IX, XIV

[3Ibidem, Livro 4, XII, XVIII