Que é “propriamente” saber o que é conhecimento, sem que eu possa dizê-lo ? Este saber é estar na presença do [88] homem cognoscente que sou. Conheço árvores, casas, pessoas, mas é como se nisso “deixasse” em primeira instância meu próprio conhecimento. Quando um psicólogo procura conhecer o semelhante que se volta a ele, o homem é o tema de seu conhecimento. Diz, p. ex., que se trata de um introvertido, emocional e inteligente, ou que sofre de uma incipiente esquizofrenia. Assim exprime o termo de encontro de seu conhecimento, mas “passa por cima” de seu próprio conhecimento e de todos os passos dados para chegar a seus juízos, não exprimindo nada disso. Contudo, o psicólogo “sabe” o que é conhecimento psicológico e como se forma seu juízo, pois que é capaz de efetuar tal conhecimento e tais juízos. Está presente ao conhecedor que ele mesmo é, e por isso também se torna possível teorizar os próprios conhecimentos e juízos [1].
O mesmo se pode dizer de inúmeras outras situações. Quando conto os cigarros em meu maço, exprimo o termo de encontro de meu contar, ao dizer: “são doze”. “Deixei de lado”, entretanto, meu contar; não o exprimi de maneira alguma; não foi o tema de minha ocupação. Apesar disso, sei o que é contar, visto que estou presente a meu próprio contar.
Se alguém então me perguntar o que estou fazendo, responderei imediatamente: “estou contando”. [2] Nesse momento, porém, o tema de meu conhecimento não são mais os cigarros, mas é o próprio contar. Estou presente a meu próprio contar, mas assim que alguém me pergunta o que estou fazendo, coloco-me explicitamente na presença desse contar e exprimo-o.
A consciência pré-reflexiva e o “irrefletido”
Agora aparece com clareza a diferença entre as duas formas de “saber”, de que acima falamos. Existe uma consciência implícita, não-expressa, não-temática, não-tética, não-reflexiva, que consiste na simples presença a meu existir. Chama-se “consciência-conta”, “consciência-prazer”, “consciência-amor”, “consciência-percepção”, “consciência-ação”, e assim por diante, sem ser a consciência de contar, de prazer, de amor, de percepção, de ação. [3] Originalmente não há consciência de si, mas [89] a consciência-de-alguma-coisa está junto com a consciência-(de)-si. [4]
O “de” entre parênteses significa que aqui se fala da consciência (de) alguma coisa, sem a explicação que seria indicada pela preposição “de”. [5] Contudo, a consciência (de) implícita, não-expressa, não-temática pode tornar-se temática e explícita. Estou originalmente presente a mim mesmo; pela reflexão me coloco presente a mim mesmo, tornando-me aquilo que antes eu deixava de lado — meu amor, meu prazer, minha ação, meu conhecimento — o tema de minha consciência.
Urge, porém, que fujamos aqui de um mal-entendido. Citamos vários modos de existir (dos quais) temos consciência. Contudo, seria engano julgar que esses modos de existir se acham ao lado da consciência ou que a consciência está fora dos modos de existir. Pelo contrário, amar, gozar, perceber etc. não são o que são sem a presença da consciência. A percepção de uma mesa é, já desde a origem, “consciência de percepção”. [6] O mesmo se aplica a todos os modos de existir consciente. [7] Logo, a implícita, não-temática consciência-(de) não se acrescenta como algo novo à existência, mas a constitui interiormente, fazendo dela o que ela é.
Difícil superestimar a importância da consciência pré-reflexiva. Aí começa o filosofar, o qual nada mais é, em primeira instância, que a expressão do que chamaríamos, com um termo geral, a vida [8]. A vida, o ser-no-mundo cognoscente, agente, amante, desejoso, emocional etc. é um ser-consciente-no-mundo. Por ser consciente, a vida não me escapa, [9] e, contudo, tenho ainda de captá-la, se quero filosofar, visto que a consciência (de) meu ser-no-mundo é apenas uma “experiência vivida”, a vida é ainda só o irrefletido, o comércio direto com coisas e pessoas. Contudo, a consciência reflexiva é alimentada continuamente pelo irrefletido, teorizando-o, sob pena de ser um filosofar sem base. [10]
[90] O filosofar, portanto, jamais pode opor-se ao irrefletido; trata-se de uma apreensão da vida, a fim de exprimi-la. Mas tal apreensão e expressão só têm valor se o filósofo exprime aquilo a que está presente e se a “experiência vivida” sustenta sua expressão reflexiva. [11]
Parece então que o resultado do método de explicitação já está pressuposto como ponto de partida; a marcha do pensamento dá a impressão de um círculo vicioso. [12] A impressão é certa, mas o filósofo não precisa desculpar-se; não deve nem tampouco pode fazer por evitar esse processo: o círculo em seu pensamento não é um círculo vicioso, visto que o modo de proceder em seu pensar não é o de um silogismo. [13] O chamado raciocínio circular da explicitação é a expressão do que o próprio homem é conforme sua estrutura essencial: um Sendo que, em seu ser, sempre cuida de seu ser, [14] um Sendo cujo ser é consciência de ser. [15] É dessa consciência, que é ele próprio, que o filósofo deve partir. Não há outro ponto de partida, pois que, fora da consciência de sua existência, não há nada mais que ocultação, tanto no que respeita ao pólo-sujeito como no referente ao pólo-objeto.
Pusemos a questão sobre o que é conhecer. A resposta é possível porque estou presente ao cognoscente que sou. Minha existência é consciência-de-conhecer, sem ser consciência de conhecimento. A resposta à pergunta tem de consistir na explicitação da consciência-conhecer, de modo a se tornar consciência de conhecimento. Essa resposta, portanto, jamais pode ser raciocinada ou provada, no sentido estrito da palavra, como, p. ex., deduzo, raciocino, provo de um círculo ou esfera as propriedades necessárias. [16] No explicitar não há provas: apenas j posso apontar. Só consigo esforçar-me por apreender e exprimir aquilo a que estou presente.
A história do pensamento, entretanto, mostra claramente a facilidade com que o filósofo negligencia, ao explicitar, algum momento essencial do irrefletido. Mesmo isso, porém, nunca se prova. Quando penso que alguém, ao explicitar, não [91] vê um momento essencial, posso, no máximo, tentar mostrar-lhe, mediante descrições bem precisas, o que deixou de enxergar. Às vezes dura muito tempo até que tal coisa seja bem sucedida. Acontece que toda uma geração de pensadores fique completamente cega a determinado fenômeno. Talvez não vejam certos fenômenos devido a qualquer espécie de convicções preconcebidas, conscientes ou subconscientes, ou por adesão a certo sistema de opiniões. [17]
Se uma descoberta é muito adiantada para seu tempo, visto que a atitude geral dos pensadores ainda não está preparada para ver certo fenômeno, não resta ao vidente genial outra possibilidade senão silenciar provisoriamente sobre sua descoberta e agir primeiro na formação de seus contemporâneos. [18]
Certas concepções, portanto, requerem uma longa preparação. Nascem na história e pode ocorrer que desapareçam também na história. O crescimento histórico das concepções está bem claramente ilustrado pela história da “definição” do conhecimento.