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Introdução à fenomenologia existencial

Luijpen: Existencialismo, fenomenologia, fenomenologia existencial

quarta-feira 31 de maio de 2017, por Cardoso de Castro

Tr. Carlos Lopes de Mattos, pp. 28-32

Do que dissemos sobre a autenticidade do filosofar infere-se facilmente que até mesmo a filosofia de nossos dias, a fenomenologia existencial, não pode ser chamada a filosofia. Também ela precisa ser superada, visto a contínua possibilidade de se exprimir melhor o último sentido da vida e do real. [1] Não queremos, todavia, adivinhar o futuro da filosofia. É bom, em todo caso, lançar um olhar sobre o passado recente da fenomenologia existencial, para que o leitor seja de certa maneira orientado também historicamente.

[29] Kierkegaard   foi o fundador do existencialismo [2] e dificilmente poderia ser chamado fenomenólogo. Husserl   lançou a fenomenologia e não é um existencialista. Isso significa que houve um tempo em que se tinha de distinguir do existencialismo a fenomenologia, enquanto que agora se fala da fenomenologia existencial ou do existencialismo fenomenológico. Em que consiste, pois, a diversidade entre o existencialismo e a fenomenologia e como surgiu o movimento de união do pensamento existencial-fenomenológico ?

A despeito das diferenças no pensamento de Kierkegaard, de um lado, e de Husserl, de outro, existe apesar de tudo certa concordância entre ambos. Esta talvez se mostre melhor na resistência dos dois pensadores ao atomismo ou elementarismo a respeito do homem e do mundo. O homem não é qualquer coisa igual a um átomo !

O modo, porém, como tal resistência se desenvolve difere: Kierkegaard fala sobre o homem, ao passo que Husserl se limita praticamente à consciência ou conhecimento.

Kierkegaard concebe o homem como existência, como sujeito-em-relação-a-Deus. Não é um átomo auto-suficiente e espiritual, mas como sujeito só é autenticamente ele mesmo em sua relação ao Deus da Revelação. Na concepção de Kierkegaard, entretanto, a existência é de todo original e irrepetível, radicalmente pessoal e única. Opinião   que não deixa de ter consequências, pois que Kierkegaard frisa a unicidade e "excepcionalidade" da existência, em detrimento do aspecto da universalidade no conhecimento (exigida por toda "ciência") quando se trata do pensamento acerca do homem. Desde que se acentua exclusivamente a unicidade e excepcionalidade da existência, cumpre admitir-se como consequência que tudo quanto um pensador fala sobre a existência não se aplica, por princípio, a nenhuma outra realidade a não ser à existência do próprio pensador, não valendo, em tese, de outras coisas. O pensamento de Kierkegaard é consciente e deliberadamente "anticientífico". [3] Em princípio, não pode tencionar ir além do monólogo, da "meditação solitária". [4]

[30] Sem dúvida, há algo de sedutor nessa concepção acerca da natureza da filosofia. Se no passado se recusava o existencialismo, entre outras coisas, por não ser uma ciência nem ser capaz de se tornar uma delas, os que se deixam inspirar por Kierkegaard responderão resolutamente com a observação de que o existencialismo não precisa ser uma ciência. Quase sempre, porém, a rejeição do predicado "científico" parece repousar numa certa aversão a determinada concepção acerca da cientificidade do pensamento sobre o homem. Na ideia de Hegel  , o qual figura na obra de Kierkegaard como a ovelha negra, bem como no cientismo, de tal modo se fala "cientificamente" do homem, que desaparece de todo a originalidade, irrepetibilidade, unicidade e caráter excepcional da subjetividade humana. [5] Entretanto, trata-se de uma linguagem julgada "científica" por excelência. Em certo sentido, pois, é óbvio que, como reação, se quis evitar a qualificação citada.

Com isso fica sem solução a dificuldade. Se há determinada concepção do pensamento científico sobre o homem que deve ser rejeitada, não se vê ainda claramente que o filosofar sobre o homem não possa e não deva ser, em certo sentido, "científico". Quem filosofa acerca do homem não pode fugir de todo a filosofar sobre o homem: precisa de juízos universais e necessários para exprimir as estruturas universais e necessárias do ser-homem. Essa concepção levou alguns a sustentar que talvez se careça de escolher entre o existir autêntico e o existencialismo. [6] Aquele que opta pelo existencialismo, deve chegar a falar das estruturas universais do ser-homem. Quem escolhe o autêntico existir tem de renunciar ao existencialismo como doutrina universal acerca do homem. [7]

As dificuldades de que acabamos de falar mal existem para quem se orienta exclusivamente pelo pensamento de Hus-serl. Tendo sido a princípio matemático e físico, Husserl, como Descartes  , irritou-se com as diferenças de opiniões e confusão de linguagem no terreno da filosofia. [8] Para ele a filosofia [31] ainda não é ciência, [9] pelo que lançou sua fenomenologia como tentativa para tornar também a filosofia uma ciência de rigor. No entanto, Husserl não pretende que a "cientificidade" da filosofia deva ser a mesma que a das ciências positivas. Ao contrário. [10] A filosofia não pode deixar que, p. ex., a física lhe prescreva seus métodos, ou orientar-se, para garantir sua própria "cientificidade", pela física. [11] A filosofia não é uma ciência positiva.

Tal coisa, porém, não significa para Husserl que a filosofia em nenhum sentido possa e deva ser chamada "científica". Não será científica de uma maneira bem determinada, mas fica excluída a "cientificidade" a seu modo, porque até a filosofia tende sempre a uma verdade intersubjetiva por princípio e objetivamente universal.

Para alcançar sua finalidade a respeito da filosofia, Husserl investiga o caráter da consciência humana ou conhecimento. Conceitua a consciência (o conhecimento), como intencionalidade, como direção àquilo que não é a própria consciência.

A concepção husserliana da consciência ou conhecimento como intencionalidade evidencia uma inegável semelhança com a que Kierkegaard tem do homem como existência. Ambos voltam-se contra a ideia atomística do homem e sua consciência; mas Husserl insiste nos problemas de teoria do conhecimento, enquanto Kierkegaard acentua as questões teológico-antropológicas. Existencialismo e fenomenologia estavam ainda distintos.

Não durou, contudo, muito tempo tal situação. No Sein und Zeit   (Ser e Tempo) de Heidegger juntaram-se o existencialismo de Kierkegaard e a fenomenologia de Husserl para servir de base à filosofia que se chama hoje geralmente "fenomenologia existencial". Em Heidegger encontramos uma filosofia do homem, que não mergulha nas ilusões do idealismo ou do positivismo. Sob o influxo da teoria do conhecimento da fenomenologia e do ideal   fenomenológico de "ciência", o existencialismo abandonou sua posição anticientífica, e a fenomenologia, como teoria do conhecimento, enriqueceu-se por tomar [32] emprestados numerosos temas ao existencialismo de Kierkegaard, a fim de se desdobrar numa filosofia do homem. [12] Assim surgiu o movimento de união do pensamento fenomeno-lógico-existencial, de que são corifeus sobretudo Heidegger, Sartre   (ainda que não em todos os sentidos), Merleau-Ponty   e a Escola de Lovaina.

Entretanto, a atitude anticientífica do existencialismo foi continuada por Karl Jaspers   e Gabriel Marcel  , [13] com o que ambos se colocaram mais ou menos fora do aludido movimento, apesar de muitos pontos de contato.

Nesta obra queremos fazer o leitor experimentar ao vivo o significado do filosofar. Despertando-o pelo próprio filosofar é possível "dizer" o que é filosofar e o enorme valor do pensamento "inútil" do filósofo. Estamos convencidos de que a filosofia não deve faltar no desenvolvimento de nossa moderna sociedade. O novo homem está ameaçado de ser vítima de uma mentalidade tecnocrática, mas à medida que tal processo avança e se alastra, mais dificuldade tem ele de consentir em sua existência. Que é o homem ? — eis a primeira questão que se impõe.


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[1"Era a falsa ideia, segundo a qual o posteriormente melhor aboliria o que precede. Este serviria de degrau para o progresso, conservando um interesse puramente histórico. O novo como tal passa então, falsamente, a valer como verdadeiro. Com a descoberta dele a gente se sente no ápice da história". K. Jaspers, Der philosophische Glaube, München, 1948, p. 129.

[2Abstraímos aqui da distinção feita por alguns entre o existencialismo e a filosofia da existência desde que Sartre julgou poder e dever identificar existencialismo e ateísmo.

[3A. de Waelhens, Kierkegaard en de hedendaagse existentialisten, em: Tijdschrift voor Philosophie (1939), pp. 827-851.

[4"Trata-se de saber se a existência não é algo que deva ser reservado à meditação solitára". J. Wahl, Petite histoire de l’existentialisme, Paris, 1947, p. 61.

[5J. Peters, Hedendaagse visies op den Mens, Gesprekken op Drakenburgh, Heerlen, s. d., pp. 228-230.

[6"Talvez se deva escolher entre o existencialismo e a existência". J. Wahl, op. cit., p. 61.

[7"Restará perguntar se a busca dos existenciais e a pesquisa do ser é compatível com a afirmação da existência". J. Wahl, op. cit., p. 43.

[8"(A filosofia) não somente dispõe de um sistema doutrinal inacabado e incompleto nos pormenores, mas até não dispõe de sistema algum. Tudo nela é discutível, toda tomada de posição depende da convicção individual, da opinião da escola, do ponto de vista". E. Husserl, Philosophie als strenge Wissenschaft, em: Logos I (1910-1911), p. 291.

[9E. Husserl, art. cit., p. 290.

[10"A filosofia, porém, está numa dimensão completamente nova. Necessita de pontos de partida totalmente novos e de um método todo novo, o que a distingue, por princípio, de qualquer ciência ’natural’". E. Husserl, Die Idee der Phänomenologie, Husserliana II, p. 14.

[11E. Husserl, Die Idee der Phänomenologie, pp. 24-26.

[12Naturalmente não negamos que a intervenção de Heidegger representa mais do que dissemos. Em particular, foi por Heidegger que a fenomenologia abriu caminho para a metafísica e depois para a ’transcendência’ da metafísica.

[13RI, p. 193.