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Kierkegaard (TD) – desespero enquanto desespero sobre si

domingo 13 de março de 2022

tradução desde Hong & Hong

Um indivíduo em desespero desespera sobre algo. Assim parece por um momento, mas apenas por um momento; no mesmo momento o verdadeiro desespero ou desespero em sua verdadeira forma se mostra. Ao desesperar sobre algo, ele realmente desesperou sobre ele mesmo, e agora ele quer se livrar dele mesmo. Por exemplo, quando o homem ambicioso cujo slogan é “Ou César ou nada” não chega a ser César, ele desespera com isto. Mas isto também significa outra coisa: precisamente porque ele não chegou a ser César, ele agora não pode suportar ser ele mesmo. Consequentemente, ele não desespera porque não chegou a ser César, mas desespera sobre ele mesmo porque não chegou a ser César. Esse eu, que, se tivesse se tornado César, estaria no sétimo céu (um estado, aliás, que em outro sentido é igualmente desesperador), esse eu agora é totalmente intolerável para ele. Num sentido mais profundo, não é seu fracasso em se tornar César que é intolerável, mas é esse eu que não se tornou César que é intolerável; ou, para ser ainda mais preciso, o que lhe é intolerável é que não pode se livrar dele mesmo. Se ele tivesse se tornado César, ele se livraria desesperadamente dele mesmo, mas ele não se tornou César e não pode se livrar desesperadamente dele mesmo. Essencialmente, ele está igualmente tão desesperado, pois ele não tem seu eu, não é ele mesmo. Ele não teria se tornado ele mesmo tornando-se César, mas teria se livrado dele mesmo, e ao não se tornar César ele se desespera por não poder se livrar dele mesmo. Assim, é superficial alguém (que provavelmente nunca viu ninguém em desespero, nem ele mesmo) dizer de uma pessoa em desespero: ela está se consumindo. Mas isso é precisamente o que ele em seu desespero [quer] e é precisamente isso que ele, para seu tormento, não pode fazer, pois o desespero inflamou algo que não pode queimar ou ser queimado enquanto eu.

Hong & Hong

An individual in despair despairs over something. So it seems for a moment, but only for a moment; in the same moment the true despair or despair in its true form shows itself. [XI 133] In despairing over something, he really despaired over himself, and now he wants to be rid of himself. For example, when the ambitious man whose slogan is “Either Caesar or nothing”20 does not   get to be Caesar, he despairs over it. But this also means something else: precisely because he did not get to be Caesar, he now cannot bear to be himself. Consequently he does not despair because he did not get to be Caesar but despairs over himself because he did not get to be Caesar. This self, which, if it had become Caesar, would have been in seventh heaven (a state, incidentally, that in another sense is just as despairing), this self is now utterly intolerable to him. In a deeper sense, it is not his failure to become Caesar that is intolerable, but it is this self that did not become Caesar that is intolerable; or, to put it even more accurately, what is intolerable to him is that he cannot get rid of himself. If he had become Caesar, he would despairingly get rid of himself, but he did not become Caesar and cannot despairingly get rid of himself. Essentially, he is just as despairing, for he does not have his self, is not himself. He would not have become himself by becoming Caesar but would have been rid of himself, and by not becoming Caesar he despairs over not being able to get rid of himself. Thus it is superficial for someone (who probably has never seen anyone in despair, not even himself) to say of a person   in despair: He is consuming himself. But this is precisely what he in his despair [wants] and this is precisely what he to his torment cannot do, since the despair has inflamed something that cannot burn or be burned up in the self.

Ferlov & Gateau

L’homme qui désespère a un sujet de désespoir, c’est ce qu’on croit un moment, pas plus ; car déjà surgit le vrai désespoir, la vraie figure du désespoir. En désespérant d’une chose, au fond l’on désespérait de soi et, maintenant, l’on veut se défaire de son moi. Ainsi, quand l’ambitieux qui dit « Être César ou rien » n’arrive pas à être César, il en désespère. Mais ceci a un autre sens, c’est de n’être point devenu César, qu’il ne supporte plus d’être lui-même. Ce n’est donc pas de n’être point devenu César qu’au fond il désespère, mais de ce moi qui ne l’est point devenu. Ce même moi autrement qui eût fait toute sa joie, joie d’ailleurs non moins désespérée, le lui voilà maintenant plus insupportable que tout. À y regarder de plus près, l’insupportable, pour lui, n’est pas de n’être point devenu César, mais c’est ce moi qui ne l’est pas devenu ; ou plutôt ce qu’il ne supporte point, c’est de ne pouvoir pas se défaire de son moi. Il l’eût pu, s’il était devenu César ; mais il ne l’est devenu et notre désespéré n’en peut plus être quitte. Dans son essence, son désespoir ne varie pas, car il ne possède pas son moi, il n’est pas lui-même. Il ne le serait pas devenu, il est vrai, en devenant César, mais il se fût défait de son moi ; en ne devenant pas César, il désespère de ne pouvoir en être quitte. C’est donc une vue superficielle de dire d’un désespéré (faute sans doute d’en avoir jamais vu, ni même de s’être vu), comme si c’était son châtiment, qu’il détruit son moi. Car c’est justement ce dont, à son désespoir, à son supplice, il est incapable, puisque le désespoir a mis le feu à quelque chose de réfractaire, d’indestructible en lui, au moi.

Melo Carneiro

O homem que desespera tem um motivo de desespero, é o que se pensa por um momento, não mais que por um momento; pois logo surge o verdadeiro desespero, a verdadeira figura do desespero. Desesperando de uma coisa, no fundo desesperava de si, e agora quer desfazer-se do seu eu. Assim, quando o ambicioso que diz “Ser César ou nada” não consegue ser César, desespera disso. Mas isto tem outro sentido; é por não se ter tornado César que ele não mais suporta ser si mesmo. Não é pois por não se ter tornado César que, no fundo ele desespera, mas do que eu que não o conseguiu. Esse mesmo eu que de outro modo teria feito toda a sua alegria, alegria aliás não menos desesperada, ei-lo agora mais insuportável do que tudo. Olhando isso mais de perto, o insuportável, para ele, não é não se ter tornado César, mas este eu que não se tornou César; ou, melhor, o que ele não suporta é não poder desfazer-se do seu eu. Tê-lo-ia podido, se tivesse se tornado César, mas tal não se deu, e o nosso desesperado não pode mais libertar-se disso. Na sua essência, o seu desespero não varia, pois não possui o seu eu, ele não é ele mesmo. É verdade que não se teria tornado ele mesmo tornando-se César, mas ter-se-ia desfeito do seu eu; não se tornando César, desespera de não poder livrar-se dele. É portanto superficial dizer de um desesperado (o que, sem dúvida, jamais aconteceu), como se fosse o seu castigo, que ele destrói o seu eu. Porque é justamente aquilo de que, para seu desespero, para seu suplício, ele é incapaz, de vez que o desesperado ateou fogo a algo que nele é refratário, indestrutível: o eu.