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Tratado do Desespero

Kierkegaard (TD:60-62) – imaginação

O desespero da infinitude ou a carência de finito

quarta-feira 16 de junho de 2021

[KIERKEGAARD  , Søren. Tratado do Desespero. Tr. José Xavier de Melo Carneiro. Brasília: Coordenada-Editora de Brasília, 1969, p. 60-62]

É verdade que o imaginário concerne em primeiro lugar à imaginação; mas esta por sua vez afeta o sentimento, o conhecimento, a vontade, de modo que se pode ter um sentimento, um conhecimento, um [60] querer imaginários. A imaginação é geralmente o agente da infinitização, não é uma faculdade como as outras… mas, por assim dizer, é o seu Proteu. O que há de sentimento, de conhecimento e de vontade no homem depende em última instância do que ele tem de imaginação, isto é, da maneira pela qual todas estas faculdades se refletem: projetando-se na imaginação. Ela é a reflexão que cria o infinito, e o velho Fichte   tinha razão de instituí-la, mesmo para o conhecimento, como origem das categorias. Assim como o eu, também a imaginação é reflexão; ela reproduz o eu e, reproduzindo-o, cria o possível do eu; e sua intensidade é o possível de intensidade do eu.

É o imaginário em geral que transporta o homem ao finito, mas somente distanciando-o dele mesmo e desviando-o assim de retornar a si mesmo.

Uma vez tornado o sentimento imaginário, o eu evapora-se mais e mais, até não ser ao fim senão uma espécie de sensibilidade impessoal, inumana, daí em diante sem vínculo num indivíduo, mas partilhando não se sabe que abstrata existência, a da ideia de humanidade, por exemplo. Tal como o reumatizado a quem suas sensações dominam, de tal modo cai sob o império dos ventos e do clima que o seu corpo instintivamente se ressente da menor transformação atmosférica, etc., assim o homem, com o sentimento tragado pelo imaginário, submerge cada vez mais no infinito, mas sem tornar-se cada vez mais ele mesmo, pois não cessa de distanciar-se do seu eu.

Igual aventura sucede ao conhecimento que se torna imaginário. Aqui, a lei de progresso do eu, para que o eu realmente se torne ele mesmo, é que o conhecimento vá a par com a consciência, e que, quanto mais conheça, tanto mais o eu se conheça. Do contrário, o conhecimento, à medida que progride, se transforma num conhecer monstruoso, no qual o homem, para edificá-lo, desperdiça o seu eu, um pouco como o desperdício de vidas humanas para erigir as pirâmides ou de vozes nos coros russos para não produzir mais que uma nota, uma única nota.

Igual aventura ainda com a vontade, quando ela imerge no imaginário: o eu se evapora cada vez mais. [61] Porque enquanto ela não deixa de ser tão concreta quão abstrata, o que não é aqui o caso, quanto mais os seus fins e resoluções imergem no infinito, tanto mais ela permanece simultaneamente disponível, quer para ela mesma, quer para a menor tarefa prontamente realizável; e é então, infinitizando-se, que ela mais retorna — no sentido estrito — a ela mesma; é quando está o mais longe dela mesma (o mais infinitizada nos seus fins e resoluções) que está, no mesmo instante, o mais próximo de realizar essa infinitesimal parcela da sua tarefa, realizável hoje mesmo ainda, na mesma hora, no mesmo instante.

E quando uma das suas atividades, querer, conhecer ou sentir, submergiu assim no imaginário, todo o eu afinal corre também o risco de nele submergir e, quer nele se lance voluntariamente ou por ele se deixe arrebatar, permanece, em ambos os casos, responsável. Leva-se então uma existência imaginária, infinitizando-se ou isolando-se no abstrato, sempre privado do seu eu, do qual só consegue distanciar-se cada vez mais.


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