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Tratado do Desespero

Kierkegaard (TD:48-51) – doença mortal do eu

quarta-feira 24 de maio de 2023

[KIERKEGAARD  , Soeren. Tratado do Desespero. Introdução e Tradução de José Xavier de Melo Carneiro. Brasília: Coordenada-Editora de Brasília, 1969, p. 48-51]

Esta ideia de “doença mortal” deve ser tomada num sentido especial. Ao pé da letra significa um mal cujo termo, cujo desfecho é a morte, e serve então de sinônimo de uma doença da qual se morre. Mas não é em tal sentido que se pode chamar assim o desespero; pois, para o cristão, a própria morte é uma passagem para a vida. Assim sendo, nenhum mal físico é para ele “doença mortal”. A morte põe termo às doenças, mas não é um termo em si mesma. Mas uma “doença mortal” no sentido estrito, significa um mal que resulta na morte, sem mais nada depois dela. E é isso o desespero.

Mas em outro sentido, mais categoricamente ainda, ele é a “doença mortal”. Porque, longe de se morrer propriamente dele, ou de consumar-se esse mal com a morte física, pelo contrário, a sua tortura consiste na impossibilidade de morrer sofrendo-o, tal como na agonia se debate o moribundo com a morte, sem contudo morrer. Assim, estar mortalmente doente é não poder morrer, mas então a vida não permite esperança, e a desesperança é a ausência da última esperança, a ausência da morte. Enquanto ela é o supremo risco, tem-se esperança na vida; mas quando se descobre o infinito do outro perigo, tem-se esperança na morte. E quando o perigo cresce a tal ponto que a morte se torna a esperança, o desespero é a desesperança de poder, sequer, morrer.

Nessa última acepção, o desespero é portanto a “doença mortal”, esse suplício contraditório, esse mal do eu: eternamente morrer, morrer sem contudo morrer, morrer a morte. Porque morrer significa que tudo acabou, mas morrer a morte significa viver a sua morte; e vivê-la um só instante, é vivê-la eternamente. Para que se morresse de desespero como de uma doença, o que há de eterno em nós, no eu, deveria poder morrer, como acontece com o corpo. Quimera! No desespero, o morrer continuamente se transforma em viver. Quem desespera não pode morrer; “assim como um punhal de nada vale para matar pensamentos”, jamais o desespero, verme imortal, fogo inextinguível, devora a eternidade do eu, que é seu próprio fundamento. Mas esta destruição de si mesmo, que é o desespero, é impotente e não atinge os seus fins. A sua vontade própria é destruir-se, mas é o que ela não consegue, e esta mesma impotência é uma segunda forma da sua destruição, em que o desespero uma segunda vez erra o seu alvo, a destruição do eu; é, pelo contrário, uma acumulação de ser, ou a própria lei dessa acumulação. Eis o ácido, a gangrena do desespero, esse suplício cujo ácume, voltado para o interior, nos afunda cada vez mais numa autodestruição impotente. Longe de consolar o desesperado, pelo contrário o fracasso do seu desespero em destruí-lo é uma tortura, que reacende seu ressentimento. Porque é acumulando sem cessar, no presente, o desespero passado, que ele desespera por não poder devorar-se nem desfazer-se do seu eu, nem aniquilar-se. Tal é a fórmula de acumulação do desespero, o crescer da febre nesta doença do eu.

O homem que desespera tem um motivo de desespero, é o que se pensa por um momento, não mais que por um momento; pois logo surge o verdadeiro desespero, a verdadeira figura do desespero. Desesperando de uma coisa, no fundo desesperava de si, e agora quer desfazer-se do seu eu. Assim, quando o ambicioso que diz “Ser César ou nada” não consegue ser César, desespera disso. Mas isto tem outro sentido; é por não se ter tornado César que ele não mais suporta ser si mesmo. Não é pois por não se ter tornado César que, no fundo ele desespera, mas do que eu que não o conseguiu. Esse mesmo eu que de outro modo teria feito toda a sua alegria, alegria aliás não menos desesperada, ei-lo agora mais insuportável do que tudo. Olhando isso mais de perto, o insuportável, para ele, não é não se ter tornado César, mas este eu que não se tornou César; ou, melhor, o que ele não suporta é não poder desfazer-se do seu eu. Tê-lo-ia podido, se tivesse se tornado César, mas [50] tal não se deu, e o nosso desesperado não pode mais libertar-se disso. Na sua essência, o seu desespero não varia, pois não possui o seu eu, ele não é ele mesmo. É verdade que não se teria tornado ele mesmo tornando-se César, mas ter-se-ia desfeito do seu eu; não se tornando César, desespera de não poder livrar-se dele. É portanto superficial dizer de um desesperado (o que, sem dúvida, jamais aconteceu), como se fosse o seu castigo, que ele destrói o seu eu. Porque é justamente aquilo de que, para seu desespero, para seu suplício, ele é incapaz, de vez que o desesperado ateou fogo a algo que nele é refratário, indestrutível: o eu.


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