Página inicial > Fenomenologia > Jaspers: O Ser da Realidade Abrangente

Pensamento Ocidental Moderno

Jaspers: O Ser da Realidade Abrangente

Filósofos e Pensadores

quarta-feira 23 de março de 2022

Excertos de "Filosofia da Existência", trad. Marco Aurélio de Moura Matos.

A REALIDADE ABRANGENTE precisa de ser mais elucidada. Precisamos adquirir a linguagem que, unicamente ela, nos permitirá formular claramente as questões básicas acerca da verdade e da realidade em geral.

O perfeito desenvolvimento desses elementos preliminares ao ato de filosofar é uma das tarefas da lógica filosófica. Aqui uma sugestão muito sumária deve bastar para o fim de indicar o significado de umas poucas palavras para a realidade abrangente que têm de ser usadas na próxima conferência — as palavras "mundo", "consciência em geral", "existência", "espírito", "Existenz  " e "transcendência".

Uma delas, a realidade abrangente — falo a seu respeito desta maneira para elucidar o seu conteúdo — divide-se imediatamente em modos da realidade abrangente através da objetividade de determinadas aparências. Estes modos separam-se independentemente, à medida que executamos os seguintes lanços gradativos do pensamento:

Primeiro lanço:

Kant   entendia que o mundo não se torna um objeto para nós, que é apenas uma ideia; isto é, tudo aquilo que podemos conhecer acha-se no mundo, nunca é o mundo. Via ele que, se presumirmos conhecer o mundo, como um todo que existe por si mesmo, caímos em armadilhas de contradições irresolúveis — as antinomias.

Kant entendia mais, que todos os nosso objetos estão condicionados pela consciência do pensar (desta forma, a unidade de qualquer objeto dado está condicionada pela unidade da consciência-em-geral como a fundamentação da sua unidade). Em outras palavras, todo "ser para nós" é uma aparência de "ser em si mesmo" tal como se apresenta a si mesmo à consciência-em-geral que abrange todo ser para nós. As elaborações da "Dedução Transcendental  " visa a uma repentina alteração no nosso senso do ser: fazendo com que nos tornemos conscientes do caráter abrangente da consciência-em-geral, geram e elucidam a consciência da fenomenalidade de todo ser mundano.

Desta forma, a realidade abrangente surgia em dois modos. A realidade abrangente na qual surge o ser em si mesmo é chamada mundo. A realidade abrangente que sou eu e que somos nós é chamada consciência-em-geral.

O segundo lanço:

Há mais coisas em relação à realidade abrangente que sou eu do que a consciência-em-geral. Eu sou como existência, o que é a base da conscientização. O retorno à realidade executa o lanço da mera consciência à existência real — a existência que tem começo e fim e que labuta e luta em sua ambiência, ou cansa-se e cede; que se rejubila e sofre, que se mostra ansiosa e esperançosa. Mais ainda não sou apenas existência, mas real como espírito, a cujas totalidades ideais tudo que é pensado pela consciência e real como existência pode ser incorporado.

O terceiro lanço:

Tomados em conjunto, estes modos da realidade abrangente constituem uma indubitável atualidade. Compreendem o ser imanente tanto de mim mesmo — existência, consciência em geral, espírito — quanto de meus objetos — o mundo. Se esta imanência é auto-suficiente ou se aponta para algo mais é uma questão de uma outra natureza. Na verdade, os homens efetivamente saltam para fora da imanência, por duas maneiras ao mesmo tempo: do mundo para a deidade e da existência do espírito consciente para a Existenz. A Existenz é o eu-ser que se relaciona a si mesmo e por isto mesmo à transcendência de que sabe que foi dada a si mesma e sobre a qual acha-se assentada.

A articulação da realidade abrangente depende da separação dos três lanços que apresentamos um após o outro; primeiramente o lanço da ideia geral da realidade abrangente à sua divisão em realidade abrangente que somos nós e a realidade abrangente que é o ser em si mesmo; em segundo lugar, da realidade abrangente que somos nós à sua divisão em que somos como existência, como consciência-em-geral e espírito; em terceiro lugar, da imanência à transcendência.

Esta articulação não significa uma dedução compulsória de um princípio, mas antes um encontro ao nível dos limites. Significa uma aceitação dos modos da presença originária do ser.

Reflitamos sobre o significado do que temos, até aqui, examinado. Quando a elucidação da realidade abrangente e dos seus modos se mostra bem sucedida, seu efeito impregna o significado de qualquer cognição. E isto porque esclarece as decisões filosóficas que atingem qualquer aspecto do nosso ser.

1. A operação filosófica básica altera o meu sentido do ser. Não mais pode a totalidade do ser ser conhecida por conceitos ontológicos; em última análise, esta totalidade só pode ser iluminada como a esfera da realidade abrangente e como as esferas em que nos deparamos com todo ser. Enquanto a ontologia envolvia o pensar o ser como uma ordem de objetos ou de unidades sensoriais, agora — desde Kant — cada ontologia deve ser rejeitada. O que resta são as esferas dentro das quais devemos, primordialmente, descobrir o que é o ser. Para a ontologia, todas as coisas eram apenas aquilo que o pensamento concebia que fossem; para o filosofar, tudo está simultaneamente impregnado pela realidade abrangente ou, mais, tudo está, praticamente, perdido. A ontologia esclarecia o significado das proposições acerca do ser ao fazer uma referência retroativa a um primeiro ser; o filosofar esclarece a realidade abrangente na qual tudo que pode ser traduzido em proposições tem sua fonte e fundamento. A ontologia fazia a tentativa de uma elucidação objetiva — ou seja, apontada para alguma coisa imediatamente evidente no pensamento imanente; o filosofar encontra o ser indiretamente no pensamento transcendente. O modelo para o significado da elucidação da realidade abrangente é uma história, bem ordenada, enquanto que o modelo para o significado da elucidação da realidade abrangente é uma vinculação inter-correlacionada de linhas esclarecedoras que se movem como se estivessem em suspensão.

Na iluminação dos modos da realidade abrangente, uma série de pseudo  -ontologias inevitavelmente surge sobre aquilo que captamos. Porquanto a estrutura conceituai dessas ontologias nos fornece a linguagem. Mas o movimento do filosofar imediatamente dissolve o seu significado da elucidação da realidade abrangente é uma de uma mera alguma coisa, faz surgir a presença de uma esfera colorida e aberta, peculiarmente, em cada instância.

2. De um lado, a inter-vinculação em que o ser se nos apresenta permite-nos uma extensão ilimitada de cognição a respeito de tudo que passa a ser um objeto. Mas, por outro lado, na realidade abrangente essa inter-vinculação coloca um limite insuperável que dá, ao mesmo tempo, asas ao significado da cognição.

Isto tem implicações importantes, especialmente para o nosso conhecimento da realidade do homem. A realidade abrangente que eu sou como existência e espírito é objetificada e, desta forma, se torna um objeto de pesquisa, como realidade empírica da existência humana e espírito que cai sob a minha atenção. Mas o conhecimento científico acerca da existência e do espírito não é o conhecimento da realidade abrangente. É, antes, conhecimento de uma aparência cujo ser é o que somos nós mesmos ou o que podemos ser — em relação a que podemos ter dois enfocamentos, mutuamente ligados um ao outro: através do seu conhecimento como aparência e através de uma consciência interior.

Todos os modos da realidade abrangente virtualmente desmoronam-se quando se tornam objetos de investigação e recebem a suposição de que podem ser mais do que isto. Expiram naquilo que fica quando se tornam visíveis e objetos conhecíveis de pesquisas, de exame. A espécie de realidade possuída por um dado objeto de conhecimento científico é uma pergunta que se deve formular em cada caso. Negativamente, é fácil afirmar:

Nenhuma antropologia conhece a existência viva, real. do homem. Essa existência viva, de realidade abrangente, que nós mesmos possuímos carrega um conhecimento biológico em si mesma apenas como uma perspectiva ou dele se utiliza como meio. No nosso exame, move-mo-nos dentro da realidade abrangente que somos ao transformarmos nossa existência num objeto para nós mesmos, atuando sobre ela e manipulando-a; mas, à medida que agimos desta forma, ela deve, ao mesmo tempo, dar-nos a conhecer que nunca a temos em nossas mãos — exceto quanto ao fato da nossa capacidade de destruir esta incompreendida existência em sua inteireza.

Nenhuma teoria estética pode compreender cientificamente a intrínseca realidade da arte — isto é, a verdade que se experimentou e que se criou na arte. O que, por exemplo, o pensamento objetivo chama de "expressão" e que correlaciona com um "sentido de vida" ou de caráter é, realmente, uma comunicação da origem rumo a uma possível origem e é uma realidade abrangente.

Nenhuma ciência da religião (história, psicologia ou sociologia da religião) compreende a realidade da religião. A ciência pode saber e compreender as religiões sem que o analista ou o investigador pertençam a qualquer delas ou nelas tenham a sua fé. A fé real não é cognoscível.

A realidade abrangente preserva minha liberdade contra a cognoscibilidade. Mas, se tomo o conteúdo do conhecimento como sendo já a própria realidade, o que é conhecido me leva, por assim dizer, ao longo de um desvio que passa ao largo da realidade. A tarefa filosófica, no interior de cada ciência, é positivamente desenvolver o que vem a ser conhecido. Toda prática à base de conhecimento deve apoiar-se na realidade abrangente que não se vê: o tratamento médico deve apoiar-se na vida não-compreendida; a alteração planejada da existência humana na fé real, não-compreendida, e na natureza da realidade abrangente nas hierarquias do homem. Toda prática verdadeira é, por conseguinte, guiada também pela realidade abrangente, que, todavia, em lugar algum expele o conhecimento. Porquanto a consciência da realidade abrangente nunca anula o conhecimento que para nós é possível. Mais exatamente, este conhecimento, juntamente com a sua relativização, é captado com uma nova profundidade; porque o seu movimento sem limite acha-se incorporado no interior de uma esfera que, embora não seja conhecida em lugar algum, torna-se presente como a que ilumina, por assim dizer, todos os objetos conhecidos.

Nenhum ser conhecido é o próprio ser. Assim, em relação ao que conheço sobre mim mesmo, nunca sou verdadeiramente eu mesmo. O que conheço do ser não é nunca o ser mesmo, o ser-em-si-mesmo. O que quer que seja conhecido, tornou-se conhecido; é, desta forma, um particular que temos captado, mas também alguma coisa que oculta e restringe. Deve-se continuamente irromper do confinamento do conhecimento, mas pode-se encontrar o conteúdo do conhecimento apenas por um domínio incondicionado e concreto da cognição, que é sempre de particulares.

3. Se mantenho ou não a totalidade dos modos da realidade abrangente na mente, à medida que filosofo, é uma decisão básica. Parece possível captar o verdadeiro ser em modos isolados, únicos — no mundo, na consciência em geral, na existência ou no espírito, ou numa combinação destes elementos. Mas os erros característicos e a perda de realidade emergem em cada caso.

A mais profundamente efetiva dentre estas decisões, todavia, é se rejeito o salto da totalidade da imanência para a transcendência ou se constituo a realização desse salto o ponto de partida do filosofar.

É o salto de tudo quanto possa ser experimentado no tempo e que possa ser conhecido intemporalmente (e, por conseguinte, permaneça sempre mera aparência) para o próprio ser real e eterno (que, portanto, não é cognoscível na existência temporal   embora apareça em expressão para nós somente na existência temporal).

É o salto da realidade abrangente que somos enquanto existência, consciência, espírito, para a realidade abrangente que podemos ser, ou que somos autenticamente, como Existenz. E é também o salto da realidade abrangente que conhecemos enquanto mundo para a realidade abrangente que o ser em si mesmo é.

Este salto é decisivo para a minha liberdade. Porquanto a liberdade existe apenas com a transcendência e pela transcendência.

Sem dúvida, existe alguma coisa que parece aparentada com a liberdade mesmo ao nível da imanência, desde que não identifique eu a realidade abrangente que sou como existência e espírito com a sua cognoscibilidade. Mas esta é tão somente a relativa liberdade para permanecer-se aberto à realidade abrangente da existência e do espírito.

Sem dúvida, há também a liberdade de pensamento que se levanta até à absoluta liberdade quanto à capacidade de tudo menosprezar — a liberdade da negatividade. Mas a liberdade positiva tem outra origem do que a do pensamento. Emerge apenas para a Existenz que se alcança com um salto. E esta liberdade é obliterada se a capacidade de o pensamento menosprezar se estende à própria liberdade e à transcendência. Não posso menosprezar a mim mesmo como possível Existenz — e, consequentemente, menosprezar também a transcendência — sem trair-me e sem mergulhar no vazio.

Porque a liberdade de Existenz existe apenas como identidade com a origem em que o pensamento soçobra. Esta liberdade é perdida para mim no momento em que cancelo o salto e resvalo para a imanência — por exemplo,— na ilusória ideia de um universal, necessária e cognoscível totalidade de eventos (do mundo, da existência, do espírito) diante da qual entrego a minha liberdade.

Aqui, neste salto para a transcendência, capto em pensamento as decisões básicas acerca do meu próprio ser e acerca da sua realidade.

O filosofar nos modos da realidade abrangente é uma questão de resolução — a resolução da vontade-para-o-ser de separar-se a si mesma de todo conhecimento determinado do ser, depois que eu tenha me apossado do seu pleno   prodígio, de modo que o ser-em-si-mesmo possa verdadeiramente vir a mim.

É a resolução em que determino se me abandono lassamente a um conhecimento satisfatório do ser ou se, em lugar disto, a uma esfera aberta, sem horizontes, que abrange todos os horizontes, em que escuto o que fala a mim e em que percebo os sinais relampejantes que apontam, avisam, instigam — e talvez revelam aquilo que é;

— se, nas reverberações do ser, tudo do que aparece como representações do ser, certifico-me eu mesmo e nunca tento evitar este caminho de imanência accessí-vel apenas a mim, como se sem ele pudesse eu imediatamente ganhar acesso aos fundamentos do ser;

— se persevero até que me torne consciente de que à única base junto à fundação da possível Existenz que sou eu é a transcendência que me apoia;

— se, em lugar de ganhar uma posição ilusória numa doutrina do ser, eu como fenômeno histórico torno-me em mim mesmo como o outro Eu dentro da realidade abrangente que permanece aberta.


Ver online : Karl Jaspers