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Pensamento Ocidental Moderno

Ingarden: A Obra de Arte Literária. Prefácio.

Filósofos e Pensadores

quarta-feira 23 de março de 2022

Roman Ingarden  , A Obra de Arte Literária. Trad., Albin E. Beau, Maria da Conceição Puga e João F. Barrento.
Prefácio.

Prefácio

As investigações trazidas a público nesta obra têm por tema principal a estrutura fundamental e o modo de ser da obra literária e, muito especialmente, da obra de arte literária. Desta pretendem sobretudo focar a estrutura caraterística e eliminar da sua concepção as várias confusões que em obras antecedentes resultaram, por um lado, das tendências psicologísticas, que continuam a ser fortes, e, por outro lado, das considerações de uma teoria geral da arte e da obra de arte. Das primeiras, trato mais pormenorizadamente na primeira parte do presente livro, permitindo-me aqui remeter o leitor para ela. Quanto à teoria geral da arte, oscilou-se, desde os tempos de Lessing, entre duas concepções antagônicas. Ou aproximou-se demasiado das «artes plásticas» (em primeiro lugar da pintura) a obra literária, e particularmente a obra de arte literária, ou pretendeu-se1 — seguindo o primeiro impulso de Lessing — , como, por ex., Th. A. Meyer, acentuar em demasia o elemento puramente linguístico da obra literária, negando assim os elementos plásticos da obra de arte literária. Estes dois extremos, a meu ver, resultaram do fato de se considerar a obra literária sempre como uma realização unistratificada, enquanto, na realidade, ela é constituída por vários estratos heterogêneos, e de se terem em conta apenas alguns elementos, e sempre diferentes nas diversas teorias, como unicamente constitutivos. Visto que as minhas considerações procuram pôr em relevo a estrutura multistratificada e a polifonia, com ela relacionada, como essenciais à obra literária, na intenção de visar todos os elementos nela existentes (…)

Fora originalmente meu propósito fazer a crítica, nesta nova edição, de algumas teorias apresentadas nos últimos anos. Como, porém, esta edição é uma reimpressão fotomecânica, devo desistir dessa intenção e limitar-me a fazer aqui algumas observações sobre a Teoria da Literatura de René Wellek e Austin Warren, referindo aqueles passos em que René Wellek expressamente menciona o meu livro (3).

Há apenas dois passos (a pp. 169 e 175) em que o meu nome aparece no texto da Teoria da Literatura (4). O primeiro destes passos refere-se à minha concepção de estratificação da obra de arte literária, não indo além, no fundo, de uma enumeração destes estratos. Afirma-se, porém, que eu distingo cinco estratos, e, entre eles, o das qualidades metafísicas. Isto é um erro. É certo que eu tive em conta, entre outras, as qualidades metafísicas, mas nunca as considerei um dos estratos da obra literária. Seria, pois, inteiramente errado se o fizesse. Só raramente aparecem em certos acontecimentos e situações da vida dentro do mundo apresentado. Se constituíssem um estrato da obra deviam pertencer à estrutura fundamental da obra de arte literária e aparecer, como tais, em todas as obras deste gênero. Não é este, de modo algum, o caso, o que aliás Wellek também nota. Apesar disto, a sua função na obra de arte é muito importante. Estão intimamente relacionadas com o seu valor estético, e foi precisamente esta a razão por que eu tratei das qualidades metafísicas (5). Podem também aparecer em obras de outras artes, sobretudo de Música, Pintura, Arquitetura, etc. Nestes casos podem frequentemente depender do modo como eu concebi a «ideia» de obra. A existência de qualidades metafísicas não está, portanto, de modo algum ligada ao carácter literário da obra. Se fossem consideradas estrato da obra de arte literária, passariam despercebidas a feição «anatômica» e a função estrutural dos estratos na obra de arte literária e na obra de arte em geral.

A minha concepção dos estratos foi descrita por R. Wellek sob o aspeto, para mim estranho e equívoco, de «norma» e de «sistema de normas» (6). Além disto, Wellek omite por completo a segunda particularidade estrutural da obra de arte literária — a sequência das partes. Isto significa uma deturpação essencial tanto da estrutura da obra literária, como ainda da minha concepção. A omissão da ordem de sequência das partes da obra torna impossível a Wellek tratar de problemas importantes da arte literária.

A páginas 175 e seg., R. Wellek critica-me da seguinte maneira: «Não nos ocupamos da questão dos valores artísticos. Mas o exame precedente deverá ter revelado que não existe estrutura fora das normas e dos valores (7). É-nos impossível compreender e analisar qualquer obra de arte sem referência a valores. O próprio fato de uma pessoa reconhecer certa estrutura como «obra de arte» implica um juízo de valor. O erro da Fenomenologia pura reside na presunção de que tal dissociação (!R. J.) é possível, de que a valores estão sobrepostas estruturas e lhes são de qualquer forma «aderentes». Este erro de análise diminui infelizmente o valor do penetrante livro de Romah Ingarden  , que tenta analisar a obra de arte sem a referir a valores (8). A raiz da questão encontra-se naturalmente na aceitação, por parte dos fenomenólogos, de uma obra eterna, intemporal, de «essências» a que apenas mais tarde (!R. J.) se adicionam as individualizações empíricas.» A isto devo responder:

1.° É-me inteiramente desconhecido e pessoalmente também completamente estranho que os «puros fenomenólogos» suponham haver «estruturas sobrepostas» aos valores e a estes de qualquer modo «aderentes». É certo que a palavra «estrutura» é tão polivalente9 em R. Wellek que esta frase mal se entende. Seja, porém, qual for a acepção das palavras «valor» e «estrutura», o verbo «sobrepor» sugere que o que está na base seria o «valor» e o que sobre ele se ergue seria precisamente umá «estrutura». É exatamente o contrário daquilo que eu afirmei. Por outras palavras: as estruturas (e nem todas, mas estruturas muito especiais) são o que está na base; o fundamento e os valores são precisamente o fundamentado.

2.° Max Scheler   falou, com efeito, de valores como objetos ideais ou essencialidades, mas distinguiu deles os «bens» que são individuais e de modo especial reais, e cujos momentos valiosos são igualmente individuais. Nenhum fenomenólogo afirmaria, porém, que a estas «essencialidades» apenas mais tarde se acrescentariam as «individualidades empíricas».

3.° São duas coisas distintas — o que R. Wellek não toma em consideração: analisar uma obra de arte individual, como, p. ex., o Fausto de Goethe  , e construir uma teoria filosófica universal da obra literária. No primeiro caso, seria errado considerar determinada obra de arte individual totalmente «sem referência» — no dizer de R. Wellek — ao seu valor artístico, embora ainda neste caso deva haver fases da investigação, em que os momentos axiologicamente neutros da obra de arte são visados, sem se atender, então, ao seu valor. No segundo caso, porém, em que a investigação é realizada com base numa análise do conteúdo da ideia universal da obra de arte, não devemos esquecer que as obras de arte são artística ou esteticamente valiosas, ou devem encarnar em si um valor, mas o valor determinado que uma obra de arte tem eventualmente, ou pode ter, deve ficar fora da nossa consideração precisamente porque esta particularidade do valor constitui uma variável no conteúdo da ideia universal de obra de arte. Só os casos singulares destas variáveis podem aparecer nas obras de arte individuais. É completamente impossível proceder de outra maneira. E o próprio R. Wellek não procede de outro modo — apesar da crítica que me dirige. Diz ele expressamente — e inteiramente no meu sentido e seguindo ainda o meu exemplo — a páginas 26 e seg. do seu livro: «Esta concepção de literatura é descritiva e não valorativa. Não se cometerá qualquer injustiça para com uma obra de grande fôlego e influência pelo mero fato de a relegarmos para o campo da retórica ou da filosofia ou do panfletarismo político, porque em todos estes campos se podem pôr problemas de análise estética e de estilística, mas falta-lhes precisamente a caraterística principal da literatura, isto é, a especial relação à realidade, que é a «ficção». Esta concepção de literatura incluiria assim todas as espécies de ficção, ainda que se tratasse do pior romance, do pior poema, do pior drama  . Segundo ela, a classificação de obras de arte deveria constituir questão distinta da valoração.»

É precisamente esta a minha opinião  . Merece também atenção o fato de, segundo R. Wellek, a literatura não se distinguir de outras obras pelo seu valor mas — na afirmação de Wellek — pela sua «relação particular com a realidade». Corresponde isto, igualmente, à minha opinião. Nesta formulação vaga, a afirmação aliás já não é nova. Na Alemanha, remonta pelo menos a Lessing. Por isso tentei dar um passo importante em frente nesta questão procurando definir um pouco mais exatamente aquela «ficção», indicando ao mesmo tempo os quase-juízos que são o seu meio de produção.

4.° Finalmente, nem tentei nem exigi «a análise da obra de arte sem referência a valores». Textualmente escrevo (p. 38): «Finalmente, abstraímo-nos por enquanto de todas as questões gerais relacionadas com a essência do valor de uma obra de arte e, particularmente, de uma obra de arte literária. Verificaremos decerto que nesta se podem encontrar valores e não-valores e que estes levam à constituição de um valor total, particularmente qualificado, de toda a obra literária. O que, porém, constitui a essência de tais valores deve ficar fora da nossa consideração porque a solução deste problema pressupõe, por um lado, a solução do problema do valor como tal e, por outro, a intuição da estrutura da obra literária. Pela mesma razão, deixamos por agora completamente de lado, no exame da obra literária, a questão do seu valor positivo ou negativo.» Por outras palavras, isto significa que eu pretendo considerar igualmente as obras de valor positivo e as «sem valor», i. é, de valor negativo! A única expressão porventura equívoca neste caso é a expressão «sem valor». Como foi, porém, empregada em oposição a «valor positivo», não deveria dar origem a mal-entendidos. Só quando tomamos em consideração todas as obras de arte, tanto as de valor positivo como as de valor negativo, podemos esclarecer porque é que muitas são estética ou artisticamente valiosas e outras, pelo contrário, no dizer do próprio R. Wellek, são «más». E o que é que eu fiz, realmente, no meu livro? Com efeito, não investiguei a essência geral do valor. Em contrapartida, procurei em cada estrato da obra de arte literária e também na ordem da sequência das suas partes os pontos onde podem surgir valores (ou mais precisamente: qualidades valiosas artísticas ou estéticas). Chamei também a atenção para vários destes pontos. Procurei ao mesmo tempo tomar consciência do que é específico no valor artístico ou estético da obra de arte, literária e caraterizei este valor como uma harmonia polifônica de qualidades valiosas. Isto pode, naturalmente, ser errado ou ainda muito insuficiente. Mas não é indício algum de eu ter procurado analisar obras de arte literária «sem referência a valores».

5.° Não posso tratar aqui do significado e da validade da afirmação com que Wellek justifica a sua posição: «A investigação anterior deve, pois, ter mostrado que não há estruturas fora de normas e valores.» O esclarecimento do sentido desta afirmação e a ponderação das suas razões só poderiam realizar-se num estudo mais extenso, que excede os limites deste livro. Fá-lo-ei noutro lugar.

Cracóvia, Setembro de 1965.

O Autor

NOTAS
1 Sobre a história do problema, cf., entre outros, Jonas Cohn, na Zeitschrift für Aesthetik und Allgemeine Kunstwissenschaft, 1907, n.° 3; além disto, R. Lehmann, Deutsche Poetik, § 8.°.

3 A Teoria da Literatura apareceu primeiro em inglês no ano de 1942, portanto numa época em que a Polônia se encontrava ocupada por tropas estrangeiras, ficando nós, durante muitos anos, excluídos da vida científica do mundo. Nessa altura o meu livro estava quase esgotado e dificilmente se podia obter nos E. U. A. É certo que a tradução alemã da Teoria da Literatura apareceu em 1959, mas eu só o soube muitos anos depois da publicação da 2.1 edição do meu livro.

4 Nas anotações e na bibliografia, o título do meu livro é várias vezes indicado. O leitor que não conhece o meu livro não pode, porém, depreender daí em que medida o livro de René Wellek segue de perto as minhas posições.

5 Isto já é um indício de que se não justifica a crítica de Wellek que discutirei mais adiante.

6 Ocupar-me-ei disto noutro lugar.

7 Se esta afirmação disser respeito à parte precedente do capítulo XII da Teqria da Literatura, a verdade é que a análise de modo algum trata da relação entre as normas, valores e estruturas. No fundo, refere-se às minhas considerações acerca da natureza e do modo de ser da obra de arte literária, sem mencionar, no texto, o meu nome. Só na página 169 há um resumo da minha concepção dos estratos.

8 Esta sentença de R. Wellek foi muitas vezes repetida por outros autores, sem verificarem a sua veracidade. Por isso refiro-a aqui.

9 Demonstrá-lo-ei noutro lugar.