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Investigações Lógicas, II, 1.a parte

Husserl (IL2.1:114-116) – Unidade ideal da espécie

terça-feira 17 de fevereiro de 2015

Investigações Lógicas, II, 1.a parte, trad. H. Élie, A. L. Kelkel e R. Schérer, Presses Universitaires de France, pp. 114-116

Aquilo que a proposição enunciativa π é um número transcendente quer dizer, o que nós entendemos por isso quando a lemos ou o que visamos quando a enunciamos não é um aspecto individual do nosso vivido mental que se contentaria com aparecer a cada ocasião. Este aspecto é, de toda a maneira, individualmente diferente de um caso para outro, enquanto que o sentido da proposição enunciativa deve ser idêntico. Quando nós, ou qualquer outra pessoa, repetimos a mesma proposição com a mesma intenção, cada um tem os seus fenômenos, as suas palavras, os seus momentos de compreensão. Mas, em face desta multiplicidade ilimitada de vividos individuais, o que é expresso neles é, sempre, algo de idêntico, o mesmo no mais estrito sentido do termo. A significação da proposição não se multiplicou com o número das pessoas e dos atos, o juízo em sentido lógico ideal   é uno.

Se insistimos aqui sobre a estrita identidade da significação e a distinguimos desse carácter psíquico constante do ato de significar, isso não se deve a uma preferência subjetiva pelas distinções subtis mas à nossa convicção teórica segura de que somente desta maneira é possível satisfazer às exigências de um estado de coisas fundamental para a compreensão da lógica. Não se trata também de uma simples hipótese que não se justificaria senão por aquilo que a sua explicação pode fornecer; referimo-nos a este estado de coisas como a uma verdade imediatamente acessível, conformando-nos assim com a autoridade última para todas as questões do conhecimento, a evidência. Vejo com evidência que, em atos reiterados de representação e de juízo, viso, ou posso visar, identicamente a mesma coisa, o mesmo conceito ou a mesma proposição; vejo com evidência que, por exemplo, onde está em questão a proposição ou a verdade: π é um número transcendente, não tenho em vista nada menos que o vivido individual ou o momento do vivido de uma pessoa qualquer. Vejo com evidência que esta formulação reflexiva tem realmente por objeto o que constitui a significação na formulação direta. Enfim, vejo com evidência que o que viso na proposição mencionada, ou então (quando a oiço) o que concebo como sendo a sua significação, é identicamente o que ela é, importando pouco que eu pense ou exista, que haja em geral pessoas que pensem e atos de pensamento. E assim para todas as espécies de significações, para a significação do sujeito, de predicado, de relação e de conexão, etc. Também assim, particularmente, para as determinações ideais que não convêm originariamente senão a significações. Fazem parte destas, para só lembrar algumas particularmente importantes, os predicados de verdadeiro e falso, possível e impossível, geral e singular, determinado e indeterminado, etc.

Ora, esta verdadeira identidade que aqui afirmamos não é senão a identidade da espécie. É assim, e somente assim, que ela pode, enquanto unidade ideal, abarcar (symballein eis en) a multiplicidade dispersa das singularidades individuais. As múltiplas singularidades que formam a significação idealmente una são naturalmente os momentos de ato correspondentes do significar, as intenções de significação. A significação comporta-se, assim, relativamente a cada um dos atos do significar (a representação lógica relativamente aos atos de representação, os juízos relativamente aos atos do juízo, o raciocínio lógico relativamente aos atos de raciocínio), de algum modo, como o vermelho in specie relativamente às tiras de papel que tenho diante dos olhos e que «têm» todas o mesmo vermelho. Além dos outros momentos que a constituem (extensão, forma, etc), cada tira tem o seu vermelho individual, isto é, o seu caso singular desta espécie de cor, enquanto que esta mesma não existe realmente nem nesta tira, nem em qualquer sítio do mundo; nem, sobretudo, «no nosso pensamento», na medida em que também ela faz parte do domínio do ser real, da esfera da temporalidade.


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