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Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica II

Husserl (IFP2:81-82) – Constituição da natureza objetiva

quarta-feira 13 de outubro de 2021

Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie  , II, Husserliana, IV, La Haye, M. Nijhoff, 1952, pp. 81-82, trad. A. L. Kelkel e R. Schérer  

Toda a coisa da minha experiência faz parte do meu «ambiente» e isto quer, primeiramente, dizer que o meu corpo próprio está presente também ao mesmo tempo. Não que esta constatação seja, em todo o sentido, uma necessidade de essência. É o que nos ensina, precisamente, «a experiência de pensamento» solipsista. Reparando melhor, o solus ipse não conhece corpo próprio objetivo, no sentido pleno   e propriamente dito, mesmo se possuir o fenômeno do seu corpo próprio e os sistemas de multiplicidades de experiências que a ele se referem de maneira tão perfeita como o homem social. Por outras palavras, o solus ipse, na verdade, não merece o seu nome. A abstração que operamos, ainda que evidentemente justificada, não nos dá o homem isolado ou ainda a pessoa humana isolada. Visto que esta abstração não consistia também em organizarmos um assassínio colectivo dos homens e dos animais do nosso mundo ambiente e não pouparmos senão o único sujeito humano que nós mesmos somos. Este sujeito único que então subsistiria sozinho seria sempre sujeito humano, isto é, este objeto inter subjetivo que se apreende e se põe sempre enquanto tal. Em contrapartida, o sujeito que construímos não sabe nada de um ambiente humano, não sabe nada de uma realidade efetiva ou mesmo de uma simples possibilidade real de «outros» sujeitos no sentido em que a apreensão do ser humano se funda sobre corpos animados susceptíveis de ser compreendidos, não sabe nada, portanto, do seu corpo próprio enquanto inteligível para outrem, não sabe nada da possibilidade que outros sujeitos têm de pousar o olhar sobre o mesmo mundo que aparece diferentemente aos diferentes sujeitos, sendo estas aparições, cada vez, relacionadas aos «seus» corpos, etc. Notar-se-á que a apreensão corporal desempenha um papel particular para a intersubjetividade na qual todos os objetos são apreendidos «objetivamente» a título de coisas num tempo objetivo único, num espaço objetivo, num único mundo objetivo. (Em todo o caso, a demonstração de toda a objetividade apreendida, seja ela qual for, requer uma referência à apreensão de uma pluralidade de sujeitos em comunicação). A coisa, que se constitui para o sujeito isolado nas multiplicidades reguladas de experiências concordantes e que não deixa de se encontrar em face do eu, através das percepções passageiras numa identidade sensível—intuitiva, como uma coisa, recebe, por isso, o carácter de um «fenômeno» simplesmente subjetivo da coisa na realidade «objetiva»; cada um dos sujeitos que se entendem intersubjetivamente sobre o mesmo mundo e, nele, sobre a mesma coisa tem desta as suas próprias percepções, mais precisamente os seus próprios fenômenos perceptivos, e, neles, a sua própria unidade fenomenal que só é fenômeno num sentido mais elevado, dotado de predicados fenomenais que não poderiam ser considerados, de chofre, como os predicados da «coisa verdadeira» que aparece.

Assim, pela via da comunicação recíproca, chegamos a uma distinção igual àquela cuja possibilidade já demonstramos ao nível solipsista. A «coisa verdadeira» é doravante o objeto que preserva a sua identidade na multiplicidade de aparições de uma pluralidade de sujeitos e, de novo mais exatamente, o objeto da intuição que se relaciona a uma comunidade de sujeitos normais, ou então a coisa física que, abstraindo desta relatividade, é determinada pelas suas propriedades lógico-matemáticas. A coisa física é naturalmente a mesma, quer seja constituída pela experiência solipsista quer pela experiência intersubjetiva. Pois a objetividade lógica é eo ipso também objetividade no sentido da intersubjetividade. O que um sujeito cognoscente conhece numa objetividade lógica (por conseguinte, de tal maneira que o objeto conhecido não traz nenhum índice de dependência do conteúdo perceptivo relativamente a esse sujeito e ao conjunto dos seus caracteres de subjetividade), pode qualquer outro sujeito cognoscente conhecê-lo a igual título, desde que preencha as condições às quais todo o sujeito que conhece tais objetos deve satisfazer. O que, aqui, quer dizer: é preciso que tenha a experiência das coisas e das mesmas coisas, é preciso, se deve conhecer essa identidade, encontrar-se com outros sujeitos cognoscentes numa relação de intropatia e deve, para este efeito, possuir um corpo próprio e pertencer ao mesmo mundo, etc.