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Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica

Husserl (IFP1:63-64) – Positivismo

§ 20. O empirismo como ceticismo

sábado 24 de março de 2018

HUSSERL  , Edmund. Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica: introdução geral à fenomenologia pura. Tr. Márcio Suzuki. Aparecida: Ideias & Letras, 2006, p. 63-64

Substituímos, pois, a experiência por algo mais geral, a “intuição” e, com isso, recusamos a identificação de ciência em geral com ciência empírica. Aliás, é fácil reconhecer que defender essa identificação e contestar a validez do pensar eidético puro leva a um ceticismo que, como ceticismo autêntico, suprime-se a si mesmo por contra-senso. [1] Basta perguntar ao empirista qual é a fonte de validez de suas teses gerais (por exemplo, “todo pensar válido se funda em experiência, como a única intuição doadora”), para que ele se enrede em notório contra-senso. A experiência direta fornece apenas singularidades e não generalidades; ela, portanto, não basta. O ceticismo não pode recorrer à evidência eidética, pois a nega; ele recorre, por isso, à indução e, assim, ao complexo de modos mediatos de inferência, mediante os quais a ciência empírica obtém suas proposições gerais. Ora, perguntamo-nos, o que acontece com a verdade das inferências mediatas, tanto faz se dedutivas ou indutivas? Essa verdade (e poderíamos até fazer a mesma pergunta a respeito da verdade de tun   juízo singular) é ela mesma algo experimentável e, portanto, finalmente perceptível? E o que acontece com os princípios dos modos de inferência, aos quais se recorre em caso de controvérsia ou de dúvida, por exemplo, com os princípios silogísticos, com a proposição segundo a qual “duas quantidades iguais a uma terceira são iguais entre si” etc., dos quais depende, enquanto fontes últimas, a legitimação de todos os modos de inferência? São eles mesmos, mais uma vez, generalizações empíricas, ou esse modo de apreensão não encerra em si o contra-senso mais radical?

Sem entrar aqui em discussões mais longas, o que seria apenas repetir o que foi dito noutros lugares, [2] seria preciso ao menos que ficasse bem claro que as teses fundamentais do empirismo carecem primeiramente de uma discussão, clarificação e fundação mais precisas, e que essa fundação mesma teria de estar de acordo com as normas expressas por essas teses. Ao [64] mesmo tempo, entretanto, também é manifesto que aqui paira uma séria suspeita de que em tal remissão às normas se esconde um contra-senso — mesmo que na literatura empirista quase não se encontre iniciativa de tentar dar seriamente clareza efetiva e fundação científica a essas relações. Uma fundação científica empírica exigiría, aqui como em qualquer lugar, que se partisse de casos singulares fixados de maneira teórica rigorosa e se passasse a teses gerais segundo métodos rigorosos, aclarados por evidência de princípio. Os empiristas parecem não ver que as exigências científicas que estabelecem em suas teses para todo conhecimento também se endereçam a suas próprias teses.

Enquanto eles, como filósofos autênticos que adotam um ponto de vista e em manifesta contradição com seu princípio de que se deve estar livre de preconceitos, partem de opiniões prévias não-clarificadas e infundadas, nós outros temos nosso ponto de partida naquilo que se encontra antes de todo ponto de vista: na esfera completa do que é dado intuitivamente e antes de todo pensar teorizante, em tudo aquilo que pode ser visto e apreendido imediatamente — não nos deixando ofuscar por preconceitos e ficar impedidos de prestar atenção a classes inteiras de dada#autênticos. Se “positivismo” quer dizer tanto quanto fundação, absolutamente livre de preconceitos, de todas as ciências naquilo que é “positivo”, ou seja, apreensível de modo originário, então somos nós os autênticos positivistas. Com efeito, não deixamos que nenhuma autoridade — nem mesmo a autoridade da “moderna ciência da natureza” — subtraia nosso direito de reconhecer todas as espécies de intuição como fontes igualmente válidas de legitimação do conhecimento. Se é efetivamente a ciência da natureza que fala, nós de bom grado ouvimos, na condição de discípulos. Mas nem sempre é a ciência da natureza que fala, quando falam os cientistas naturais e, seguramente não é ela, quando eles falam de “filosofia da natureza” e de “teoria do conhecimento da ciência natural”. E, principalmente, quando nos querem fazer crer que noções gerais óbvias, tais quais expressas em todos os axiomas (em proposições como “a + 1 = 1 + a”, “um juízo não pode ser colorido”, “de dois sons qualitativamente distintos, um é mais grave e o outro mais agudo”, “uma percepção é em si percepção de alguma coisa” etc.), sejam expressões de fatos empíricos, enquanto nós reconhecemos, com plena evidência, que tais proposições trazem à expressão explicativa dados da intuição eidética. Justamente por isso fica claro para nós que os “positivistas”, ora misturam as diferenças cardeais das espécies de intuição, ora as veem contrastadas, mas, presos a seus preconceitos, eles só querem reconhecer uma única delas como válida, ou até como existente.


Ver online : Edmund Husserl


[1Sobre o conceito característico de ceticismo, cf. os “Prolegômenos à Lógica Pura”, Investigações Lógicas, I, § 32.

[2Cf. Investigações Lógicas, I, especialmente capítulos IV e V.