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Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica

Husserl (IFP:35-38) – § 3. Visão de essência e intuição individual

Capítulo I - Fato e essência

quarta-feira 13 de outubro de 2021

HUSSERL  , Edmund. Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica: introdução geral à fenomenologia pura. Tr. Márcio Suzuki. Aparecida: Ideias & Letras, 2006, p. 35-38

“Essência” designou, antes de mais nada, aquilo que se encontra no ser próprio de um indivíduo como o que ele é. Mas cada um desses “o quê” ele é, pode ser “posto em ideia”. A intuição empírica ou individual pode ser convertida em visão de essência (ideação) — possibilidade que também não deve ser entendida como possibilidade empírica, mas como possibilidade de essência. O apreendido intuitivamente é então a essência pura correspondente [36] ou eidos  , seja este a categoria suprema, seja uma particularização dela, daí descendo até a plena concreção.

Essa apreensão intuitiva que dá a essência, e eventualmente a dá de modo originário, pode ser adequada, como a que podemos facilmente obter, por exemplo, da essência “som”; mas pode também ser mais ou menos incompleta, “inadequada”, e isso não apenas com respeito à maior ou menor clareza e distinção. É da conformação própria de certas categorias eidéticas que suas essências só possam ser dadas por um lado e, subsequentemente, “por vários lados”, jamais, porém, “por todos os lados”; correlativamente, as singularizações individuais a elas correspondentes só podem, portanto, ser experimentadas e representadas em intuições empíricas inadequadas, “unilaterais”. Isso vale para toda essência referente a coisa, ou seja, para toda essência que a ela se refira segundo qualquer um dos componentes eidéticos da extensão ou da materialidade; aliás, considerando melhor (as análises que se farão mais tarde o tornarão evidente), isso vale para todas as realidades em geral, pelo que as expressões vagas “um lado” e “vários lados” ganharão, sem dúvida, significações precisas, e diferentes espécies de inadequação deverão ser distinguidas.

Basta por ora a indicação de que mesmo a forma espacial de uma coisa física só pode ser dada, por princípio, em meros perfis unilaterais; de que toda qualidade física nos enreda nas infinidades da experiência, mesmo fazendo abstração dessa inadequação, que se mantém constante apesar de todo o ganho e qualquer que seja o avanço que se faça em intuições contínuas; e de que toda multiplicidade empírica, por mais abrangente que seja, ainda deixa em aberto determinações mais precisas e novas das coisas, e assim in infinitum.

Não importa se a intuição individual seja de tipo adequado ou não: ela pode ser convertida em visão de essência, e esta última, quer seja adequada de maneira correspondente, quer não, tem o caráter de um ato doador. Isso, no entanto, implica o seguinte:

A essência (eidos) é uma nova espécie de objeto. Assim como o que é dado na intuição individual ou empírica é um objeto individual, assim também o que ê dado na intuição de essência é uma essência pura.

Não há aqui mera analogia   exterior, mas algo de radicalmente comum entre elas. Visão de essência também é, precisamente, intuição, [1] assim como objeto eidético é, precisamente, objeto. A generalização dos conceitos correlativos [37] e interdependentes “intuição” e “objeto” não é um achado arbitrário, mas forçosamente exigida pela natureza das coisas. [2] Intuição empírica, e, em especial, experiência, é consciência de um objeto individual e, como consciência intuitiva, “é da que traz o objeto à doação”: como percepção, ela o traz à doação originária, à consciência que apreende “originariamente” o objeto em sua ipseidade “de carne e osso”. Exatamente da mesma maneira, a intuição de essência é consciência de algo, de um “objeto”, de um algo para o qual o olhar se dirige, e que nela é “dado” como sendo “ele mesmo”; mas também é consciência daquilo que então pode ser “representado” em outros atos, pode ser pensado de maneira vaga ou distinta, pode tornar-se sujeito de predicaçõcs verdadeiras ou falsas — justamente como todo e qualquer “objeto” no sentido necessariamente amplo da lógica formal  . Todo objeto possível ou, para falar como a lógica, “todo sujeito de predicações verdadeiras possíveis” tem precisamente suas maneiras de entrar no campo de um olhar representativo, intuitivo, que eventualmente o encontre em sua “ipseidade de carne e osso”, que o apreenda. A visão de essência ê, portanto, intuição, e se é visão no sentido forte, e não uma mera e talvez vaga presentificação, da é uma intuição doadora originária, que apreende a essência em sua ipseidade “de carne e osso”. [3] Por outro lado, ela é, no entanto, intuição de uma espécie própria e nova por princípio, isto é, ela se contrapõe a todas as espécies de intuição que têm por correlato objetividades de outras categorias e, especialmente, à intuição no sentido habitual mais estrito, ou seja, a intuição individual.

Faz parte, certamente, da especificidade da intuição de essência que em sua base esteja uma parcela importante de intuição individual, isto é, que um algo individual apareça, seja visível, embora não naturalmente uma apreensão dele, nem posição alguma dele como efetividade; é certo, por conseguinte, que nenhuma intuição de essência é possível sem a livre possibilidade de voltar o olhar para um algo individual “correspondente” e de formar uma consciência exemplar — assim como também, inversamente, intuição individual [38] alguma é possível sem a livre possibilidade de efetuar uma ideação e de nela direcionar o olhar para as essências correspondentes, que se exemplificam no visível individual; isso, porém, em nada altera que ambas as espécies de intuição sejam diferentes por princípio, e o que se anuncia em proposições do tipo que acabamos de proferir são somente suas relações de essência. Às diferenças eidéticas entre as intuições correspondem relações de essência entre “existência” (aqui manifestamente no sentido do individualmente existente) e “essência”, entre fato e eidos. Indo no encalço de tais nexos, apreendemos com evidência as essências conceituais inerentes a esses termos, e que a partir de então lhes estão firmemente ordenadas, e com isso permanecem puramente afastados todos os pensamentos, em parte místicos, que se prendem principalmente aos conceitos “eidos” (ideia), “essência”. [4]


Ver online : Edmund Husserl


[1Do ponto de vista linguístico, Husserl apóia-se aqui no parentesco lexical de “visão” (Erschauung) e “intuição” (Anschauung). O português “intuição” perdeu a referência à “visão” contida no latim intueor, que significa “olhar”, “considerar”. (NT)

[2Quão difícil é em nossa época para os estudiosos de psicologia a assimilação desse conhecimento simples e bastante fundamental, se vê de maneira exemplar pela surpreendente polêmica de O. Külpe contra minha doutrina da intuição categorial, na obra Die Realisierung I (1912), que acabo de receber. Lamento ter sido mal-compreendido pelo insigne estudioso. Uma resposta crítica se toma, porém, impossível onde a má compreensão é tão completa, que nada mais resta do sentido de minhas constatações. [[Quão difícil é em nossa época para os estudiosos de psicologia a assimilação desse conhecimento simples e bastante ftindamental, se vê de maneira exemplar pela surpreendente polêmica de O. Külpe contra minha doutrina da intuição categorial, na obra Die Realisierung I (1912), que acabo de receber. Lamento ter sido mal-compreendido pelo insigne estudioso. Uma resposta crítica se toma, porém, impossível onde a má compreensão é tão completa, que nada mais resta do sentido de minhas constatações.

[3Nas Investigações Lógicas costumei empregar a palavra ideação para a visão de essência originariamente doadora e, mormente, para a visão adequada. Todavia, é preciso manifestamente um conceito mais livre, que abranja toda e qualquer consciência posicionai, voltada simples e direta mente para uma essência por ela apreendida, entre as quais também se encontra toda consciência “obscura”, portanto, já não mais intuitiva.

[4Cf. meu artigo em Logos, I, p. 315.