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A Filosofia como Ciência de Rigor

Husserl (FCR:9-13) – Filosofia naturalística

quarta-feira 13 de outubro de 2021

Excerto de HUSSERL  , Edmundo. A Filosofia como Ciência de Rigor. Tr. Albin Beau. Coimbra: 1992, p. 9-13

O Naturalismo resulta do descobrimento da Natureza como unidade do Ser no tempo e no espaço, segundo leis exactas naturais. O Naturalismo propala-se na medida da realização progressiva desta ideia em ciências naturais, que constantemente se multiplicam, fundamentando uma superabundância de conhecimentos rigorosos. Analogamente, o Historicismo resultou mais tarde da «descoberta da História» e da fundamentação de Ciências morais que se foram multiplicando. É que em conformidade com as concepções habituais, o cientista dedicado às Ciências naturais tende a considerar tudo como natural, e o erudito dedicado às Ciências morais, a considerar tudo como espiritual, como histórico, errando, por conseguinte, na interpretação daquilo que não possa ser considerado desta maneira. Portanto, passando a tratarmos em especial do Naturalista, este não depara senão com a Natureza, a começar pela natureza física. Tudo que é, ou é, ele mesmo, físico, ou, apesar de psíquico, é mera variação dependente do físico, na melhor das hipóteses, «facto paralelo, concomitante», secundário. Tudo que é, é de natureza psico-física, inconfundivelmente determinado segundo leis firmes. Para nós, esta concepção não sofre modificação essencial com a dissolução sensualista da natureza física, em cores, sons, pressões, etc., nem tão-pouco com a do chamado psíquico, em complexos complementares daqueles, ou de outras «sensações», no sentido do Positivismo (quer se apoie numa interpretação naturalista de Kant  , quer na renovação e continuação consequente de Hume  ).

[10] O que caracteriza todas as formas do Naturalismo extremo e consequente, a começar pelo Materialismo popular até aos mais recentes Monismo sensorial e Energetismo, é por um lado a naturalização da consciência, incluindo todos os dados intencionais e imanentes da consciência, e por outro lado a naturalização das ideias, e de todos os ideais e normas absolutos.

A este último respeito, ele elimina-se a si mesmo, sem dar por isso. Se consideramos a Lógica formal   como o índice exemplar de toda a idealidade, o Naturalismo, como se sabe, interpreta os princípios lógico-formais, as chamadas leis do pensamento, no sentido de leis naturais do pensamento. Noutro lugar [1] se provou por extenso que isto implica um contra-senso daquele gênero que caracteriza todas as teorias cépticas num sentido expressivo. Podem-se sujeitar a idêntica crítica radical também a axiologia, a prática, e com ela a ética naturalista. Pois os contra-sensos teóricos são inveitavelmente seguidos por contra-sensos (discordâncias evidentes) no procedimento actual, teórico, axiológico, ético. Em geral, pode dizer-se que o Naturalista é idealista e objectivista no seu procedimento. Anima  -o o intuito da intelecção científica e portanto concludente para todos os seres racionais daquilo que seja por toda a parte a verdadeira Beleza e o autêntico Bem da sua definição geral, do método de os conseguir no caso singular. Julga o fim atingido, no que tem de mais importante, pelas Ciências naturais e pela filosofia científica, naturalista, e com o entusiasmo desta consciência, defende agora, qual doutrinador e reformador prático, a Verdade, o Bem e a Beleza «naturalistas, científicas». Ele é, porém, um idealista que estabelece e julga fundamentar teorias que negam precisamente as premissas do seu procedimento idealista, quer construa teorias, quer [11] fundamente   e simultaneamente recomende valores ou normas práticas como os mais belos e melhores, — as premissas das suas próprias teorizações, da sua instituição de valores objectivos propriamente adequados para a valorização, e igualmente de regras práticas que se imponham à vontade e acção de todos. O Naturalista é doutrinador, pregador, moralizador, reformador. Haeckel e Ostwald podem servir de exemplos excelentes.. Mas nega aquilo que é a premissa do sentido de todo o sermão e de todo o postulado como tais. Apenas não ensina, tal qual o cepticismo antigo, expressis verbis, que a única coisa razoável seria negar a Razão, tanto a teórica como a axiológica e a prática. Insistiría até em distanciar-se disto. O contra-senso que há nele, não é patente, mas oculta-se a ele próprio, residindo na sua naturalização da Razão.

A este respeito, o litígio está objetivamente decidido, embora continue a subir a maré do Positivismo e do Pragmatismo, ainda mais relativista do que aquele. Contudo, é precisamente nesta circunstância que se evidencia a exiguidade do vigor efectivo de argumentos que partem das consequências. Os preconceitos cegam, e quem não ver senão factos empíricos e intimamente não reconhecer valor senão à ciência empírica, não se sentirá muito perturbado com consequências absurdas que não podem ser comprovadas empiricamente como contraditórias com os factos da Natureza. Desprezá-las-á como «Escolasticismo». Mas a argumentação baseada nas consequências pode também falhar facilmente entre aqueles que são acessíveis ao seu vigor concludente. Com o descrédito aparente do Naturalismo, que pretendeu informar a Filosofia ne base da ciência de rigor e como ciência de rigor, o seu próprio fim metódico aparece desacreditado, e tanto mais quanto é certo que neste lado também reina a tendência de se [12] poder imaginar a ciência de rigor apenas como ciência positiva, e a filosofia científica apenas como baseada numa tal ciência. Porém, isto também não passa de um preconceito, e seria um erro fundamental desviar-se por isso da linha da ciência de rigor. Os méritos do Naturalismo e ao mesmo tempo uma parte principal do seu vigor na nossa época, residem precisamente na energia com que ele procura realizar o princípio do rigor científico em todas as esferas da Natureza e do Espírito, na teoria e na prática, e com que aspira à solução científica — ao seu parecer, de «exactidão naturalista» — dos problemas filosóficos do Ser e dos Valores. Talvez não haja outra ideia, mais poderosa, mais continuamente progressiva, em toda a vida moderna, do que a da Ciência. À sua marcha triunfal, nada se oporá. De facto, ela é universal nos seus fins legítimos. Pensada na perfeição ideal  , ela seria a própria Razão que não poderia ter outra autoridade igual ou superior. Portanto, todos os ideais teóricos, axiológicos, práticos, que o Naturalismo adultera, impondo-lhes a interpretação empírica, entram certamente também no domínio da ciência de rigor.

Entretanto, as convicções gerais pouco significam, quando não se sabe fundamentá-las, e pouco significa a esperança numa ciência, quando não se descobrem os caminhos que levam aos seus fins. Se pois se quer que a ideia de uma Filosofia como ciência de rigor dos problemas indicados e de todos os restantes, congêneres, não fique sem vigor, é preciso encararmos possibilidades claras da sua realização, é preciso que o esclarecimento dos problemas e a penetração do seu sentido puro nos leve a termos também a noção plena dos métodos adequados a estes problemas, por serem postulados pela sua própria essência. É esta a obra a realizar, para se chegar implicitamente à confiança viva e activa na Ciência, e ao seu verdadeiro início. A este respeito, [13] pouquíssimo se deve à refutação, aliás útil e imprescindível, do Naturalismo na base das consequências. Outra coisa resulta da crítica necessária, positiva e sempre feita em princípio, dos seus fundamentos, seus métodos e suas realizações. Distinguindo e esclarecendo, obrigando a examinar o próprio sentido dos motivos filosóficos, geralmente formulados tão vaga e ambiguamente como problemas, a crítica é susceptível de despertar as noções de fins e de caminhos melhores, e de ser positivamente propícia para o nosso propósito. Nesta intenção é que discutimos mais por extenso o carácter particularmente acentuado atrás, da filosofia combatida, o da naturalização da consciência. As relações mais profundas com as consequências cépticas aludidas, revelar-se-ão espontaneamente, e compreender-se-á igualmente toda a amplitude do significado e da motivação a atribuir a nossa segunda censura, que diz respeito à naturalização das ideias.


Ver online : Edmund Husserl


[1Cf. as minhas Investigações lógicas, vol. I, 1900