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A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental

Husserl (CCEFT:37-38) – O esvaziamento de sentido da ciência matemática da natureza pela “tecnicização”

§ 8. A origem da ideia moderna da universalidade da ciência em meio à transformação da matemática

quarta-feira 13 de outubro de 2021

Excerto de HUSSERL  , Edmund. A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental  : uma introdução à filosofia fenomenológica. Tr. Diogo Falcão Ferrer. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012, p. 37-38

Em si, o progresso da matemática objetiva em direção à sua logicização formal  , e a autonomização da lógica formal, ampliada como análise pura ou doutrina pura das multiplicidades, é algo de totalmente legítimo, e mesmo necessário; assim como a tecnicização, com a sua ocasional perda total num pensar meramente técnico. Tudo isto, porém, pode e tem de ser um método exercido e compreendido em plena consciência. Mas isto só acontece se forem acautelados perigosos deslizamentos de sentido, fazendo com que permaneça sempre disponível, em ato, a doação de sentido originária a partir da qual o método tem o sentido de <47> um contributo para o conhecimento do mundo; e, ainda mais, que ele seja liberto de toda a tradicionalidade inquestionada que fez introduzir momentos de obscuridade de sentido, já desde a invenção inicial da nova ideia e do novo método.

O interesse   predominante do pesquisador que descobre a natureza dirige-se, conforme apresentamos, para as fórmulas, alcançadas e por alcançar. Quanto mais longe a física avançou na matematização efetiva da natureza intuível, previamente dada ao modo do mundo circundante, tanto mais ela passou a dispor de proposições matemático-científico-naturais, e, simultaneamente, quanto mais formado está já o seu instrumento competente, isto é, a “mathesis   universalis”, tanto maior é o domínio dos raciocínios dedutivos de novos fatos da natureza quantificada para ela possíveis e, assim, também o das remissões às verificações correspondentes a efetuar. Estas competem propriamente ao físico experimental, bem como todo o trabalho de ascensão, a partir do mundo circundante intuível e das experiências e medições nele a efetuar, até aos polos ideais. Os físicos matemáticos, por sua vez, sediados na esfera do espaço-tempo aritmetizada ou, em simultâneo com ela, na mathesis   universalis formalizante, tratam as fórmulas físico-matemáticas que lhes são trazidas como configurações puras particulares da mathesis formal, mantendo naturalmente invariantes as constantes que nelas ocorrem como em leis funcionais da natureza fática. Tomando conjuntamente em consideração a totalidade das “leis da natureza, já demonstradas ou que estão a ser trabalhadas como hipóteses”, eles retiram, com base em todo o sistema formal de leis desta mathesis de que dispõem, as consequências lógicas cujos resultados os experimentalistas têm de assumir. Mas também realizam a elaboração das possibilidades lógicas de novas hipóteses a cada passo disponíveis, as quais têm, é certo, de ser compatíveis com a totalidade das hipóteses de cada vez admitidas como válidas. Cuidam, assim, da preparação das formas das hipóteses, [37] formas que serão, a partir daí, como possibilidades hipotéticas, as únicas admissíveis para a interpretação das regulações causais a estabelecer doravante de modo empírico, por observação e experimentação, em relação ao polo ideal   que lhes pertence, isto é, a leis exatas. <48> Mas mesmo os físicos experimentais estão no seu trabalho permanentemente voltados para o polo ideal, para grandezas numéricas, para fórmulas gerais. Estas estão, por conseguinte, no centro do interesse de toda a pesquisa científico-natural. Todas as descobertas, tanto da física antiga quanto da nova, são descobertas dentro do que se poderia chamar de mundo das fórmulas ordenado à natureza.

O sentido de fórmula deste mundo reside em idealidades, enquanto toda a laboriosa realização a elas dirigida assume o caráter de um mero caminho para uma meta. E, aqui, há que tomar em consideração a influência da tecnicização, acima caracterizada, do trabalho do pensar matemático-formal: a transformação das suas teorias experienciais, descobridoras e construtoras, de um pensar eventualmente figurador da maior genialidade, num pensar com conceitos transformados, com conceitos “simbólicos". Assim se esvazia também o pensar puramente geométrico, bem como, na aplicação deste à natureza fática, o pensar científico-natural. Uma tecnicização apodera-se, além disto, de todos os métodos restantes próprios às ciências da natureza. E não é só que estes, em consequência, se “mecanizam”. Pertence à essência de todo o método a tendência de se perder numa união com a tecnicização. A ciência da natureza sofre, assim, uma múltiplice transformação e encobrimento de sentido. Toda a combinação entre física experimental e física matemática, assim como o gigantesco trabalho do pensar daí em diante efetivamente realizado, decorre num horizonte de sentido transformado. É certo que existe até determinado ponto a consciência da diferença entre techne   e ciência, mas o estudo retrospectivo do sentido específico que a natureza adquiriu pelo método artificial cessa demasiado cedo. Já não chega sequer longe o suficiente para conduzir até o nível da ideia de uma matematização da natureza, ideia que foi delineada pela meditação criativa de Galileu  , até aquilo que Galileu e os seus seguidores pretendiam com esta matematização, e que conferia sentido ao seu trabalho construtivo.


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