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Posfácio às minhas «Ideias diretizes» (1930)

Husserl – A filosofia, ciência rigorosa

quarta-feira 13 de outubro de 2021

Posfácio às minhas «Ideias diretizes», trad. francesa Arion L. Kelkel, Revue de Métaphysique et de Morale, 1957, n.° 4, pp. 372-374

Restituo a ideia de filosofia mais original, a que, desde a sua primeira expressão coerente dada por Platão, se encontra à base da nossa filosofia e da nossa ciência europeias e permanece para elas a indicação de uma tarefa imorredoira. «Filosofia», segundo esta ideia, significa, para mim, «ciência universal» e, no sentido radical da palavra, «ciência rigorosa». Enquanto tal, é ciência nos seus últimos fundamentos, ou, o que é equivalente, ela é para si mesma a sua última justificação; nenhuma evidência auto-suficiente, predicativa ou ante-predicativa, poderá nela figurar como base de conhecimento admitida sem exame. Esta Ideia — insisto neste ponto e as reflexões ulteriores o explicitarão — não poderia ser realizada senão em formas de uma validade temporária e relativa e através de um processo histórico sem fim; mais ainda, é deste modo que ela deve ser efetivamente realizada. Esta ideia, em conformidade com a sua origem histórica, continua a viver nas nossas ciências positivas, por pouco que elas a satisfaçam realmente em virtude da natureza do seu fundamento. Como se sabe, foi por este fato que lhe surgiram dificuldades, ao longo do seu recente desenvolvimento, e ao mesmo tempo instalou-se um cepticismo que ameaça desacreditar no seu conjunto o grande projeto de uma ciência rigorosa e, concebido num sentido ainda mais universal, o de uma filosofia como ciência rigorosa. De preferência a ceder apressadamente a este espírito céptico, parece-me mais justo, e parece-me ser esta a grande tarefa da nossa época, proceder a uma reflexão radical, a fim de explicitar intencionalmente o sentido autêntico desta ideia de filosofia e demonstrar a possibilidade da sua realização. O que não pode realizar-se de uma maneira decisiva e fecunda senão pela operação sistemática do método da interrogação, subindo até aos últimos pressupostos concebíveis do conhecimento. Esta interrogação conduz, primeiramente, à vida e ao ser subjetivos universais que, enquanto pré-científicos, estão já pressupostos em toda a elaboração teórica; e, a partir daí — é o passo decisivo — , subir à «subjetividade transcendental  » (para empregar o termo clássico, mas com um sentido novo), como lugar originário de toda a doação de sentido e de toda a verificação de ser. A «filosofia como ciência rigorosa», isto é, como ciência universal e absolutamente fundadora, não deve ser abandonada antes de se ter, novamente, tentado, e com a maior seriedade, fundá-la realmente; por outras palavras, antes de se ter meditado, com a mesma seriedade, a ciência fenomenológica, ciência de um novo começo, nascida desta mesma intenção. Empreender uma discussão mais cerrada com as correntes adversárias no nosso tempo, que, no oposto da minha filosofia fenomenológica, pretendem separar ciência rigorosa e filosofia, é o que não posso fazer aqui. O meu único objetivo é dizer expressamente que não posso reconhecer como justificada nenhuma das objecções formuladas por esse lado: acusem-me de intelectualismo, digam que a minha tentativa metódica se perde em abstrações unilaterais, censurem-me por não atingir, de forma alguma e por razões de princípio, a subjetividade originariamente concreta, a subjetividade prática e ativa, como por não atingir os problemas ditos «existenciais», nem as questões metafísicas. Essas objecções repousam todas em mal-entendidos e, em última análise, no fato de reduzirem a minha fenomenologia a um nível em cuja ultrapassagem reside, precisamente, toda a sua significação; por outras palavras, desconheceu-se o que há de essencialmente novo na «redução fenomenológica» e, por isso mesmo, não se compreendeu que nos elevávamos da subjetividade mundana (isto é, do homem) à «subjetividade transcendental»; fica-se prisioneiro de uma antropologia, empírica ou a priori  , antropologia que, segundo a minha teoria, permanece ainda muito para cá do terreno especificamente filosófico, e considerá-la como filosofia é recair no «antropologismo transcendental», ou antes, no «psicologismo transcendental».


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