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Ver o invisível

Henry (VI:13-16) – interior — exterior

Sobre Kandinsky

terça-feira 14 de setembro de 2021

Excerto de HENRY, Michel. Ver o invisível. Sobre Kandinsky. Tr. Marcelo Rouanet. São Paulo: É Realizações, 2012, p. 13-16. (versão em inglês)

Tradução

Lendo-se com alguma atenção as obras teóricas de Kandinsky, percebem-se dois termos recorrentes e centrais na análise: “interior” e “exterior”. O segundo grande escrito, Punkt   und Linie zu Fläche [Ponto e Linha sobre Plano], de 1926, época da Bauhaus, começa assim:

“Todo fenômeno pode ser vivido de duas maneiras, não arbitrariamente ligadas aos fenômenos, mas decorrentes da natureza dos fenômenos, de duas de suas propriedades:

Exterior-Interior.”

Essa declaração liminar deve ser imediatamente esclarecida, pois comporta o destino da pintura abstrata; ou seja, consolidaremos progressivamente o destino da pintura e, mais ainda, o destino de qualquer arte concebível. Que todo fenômeno possa ser vivido de duas maneiras, exteriormente e interiormente, experimentamos constantemente com um fenômeno que justamente nunca nos abandona: nosso corpo. Pois, de um lado, vivo interiormente esse corpo, coincidindo com ele e com o exercício de cada um de seus poderes: eu vejo, ouço, cheiro, movo mãos e olhos, tenho fome, frio, de tal modo que eu sou esse ver, esse ouvir, esse cheirar, esse movimento, essa fome, que eu me precipito inteiro em sua pura subjetividade, a ponto de não poder me diferenciar deles - fome, sofrimento, etc. - em nada. De outro lado, e ao mesmo tempo, eu vivo exteriormente esse mesmo corpo por ser capaz de vê-lo, tocá-lo, representá-lo a mim mesmo como objeto, realidade exterior próxima aos outros objetos.

Ora, essa propriedade extraordinária pela qual meu corpo se oferece a mim de duas maneiras diferentes, “interiormente” ao se identificar a meu ser mais profundo, “exteriormente” enquanto se pro-põe também a mim ao modo de ob-jeto, Kandinsky estende a todos os fenômenos. É o que aparece a nós, justamente chamado fenômeno, que permite essa distinção das “duas maneiras”. Essas duas maneiras [diese zwei Arten] não concernem o conteúdo do fenômeno, mas precisamente a maneira pela qual esse conteúdo se mostra a nós, aparece. As “duas maneiras” são dois modos de aparecer. São o que Kandinsky chama “Exterior” e “Interior”. O Exterior não designa imediatamente algo exterior, mas a maneira pela qual esse algo se manifesta a nós. Essa maneira consiste justamente em estar fora, olhando - de tal modo que o simples fato de estar adiante, fora, leva a exterioridade como tal a constituir a manifestação, a visibilidade. Exterioridade em que tudo, todo conteúdo se visibiliza, torna-se fenômeno exterior, é o mundo - visível, pois mundo significa exterioridade, que constitui a visibilidade. Um fenômeno exterior nunca é visto ou conhecido por suas propriedades - por ser grande ou pequeno, estruturado ou informe, etc. - mas só por ser exterior: pois, pertencendo ao “mundo” que significa exterioridade, ele se manifesta nela, que é a manifestação mesma. Por isso Kandinsky diz que a “maneira” não está ligada arbitrariamente ao fenômeno, pois é essa maneira - aqui, a exterioridade - que justamente o torna fenômeno, fazendo-o mostrar-se.

À maneira de mostrar-se como fenômeno exterior, à exterioridade, à visibilidade do mundo, opõe-se, segundo Kandinsky, outra “maneira”, um modo de se apresentar mais antigo, de certa forma, e mais radical: o Interior. O Exterior, como o Interior, não designa algo particular - que se revelaria interiormente - mas o próprio fato de se revelar assim, a interioridade enquanto tal. Em que consiste essa última, a “maneira” mais original de se mostrar, de “ser vivenciada”? Questão incontornável: “ser vivida interiormente”; essa “maneira” sobre a qual Kandinsky edificará sua estética não poderia ser afirmada simplesmente. Ela seria então atacada por crítica limitando-se a negar sua existência; “nada existe de semelhante!”, “a interioridade é mito!”. Em outros termos, o Exterior se autocomprovou, e essa prova, parece, é ele próprio, é o mundo tal como aparece em sua visibilidade incontestável, oferecendo-me incessantemente seu espetáculo   e ao qual, mesmo quando fecho os olhos, adiro por todos os meus sentidos voltados a ele. Do mesmo modo, o Interior, se o tomarmos como fundamento de toda nossa análise, deve se auto-comprovar também, significando mostrar-se - mas de maneira própria, que não é mais a do mundo. Por exemplo, a exigência - a do cientista - dirigida ao Interior de aparecer à maneira do mundo como fenômeno exterior, para ser visto com os olhos do corpo, ou pelo menos os do espírito, seria absurdo. Assim, ao modo de algo que está adiante e que, por isso, pode ser visto, o Interior jamais se mostrará. Ele é o invisível, o que não pode nunca ser visto num mundo, nem à maneira de um mundo. Inexiste “mundo interior”. O Interior não é a reprodução internalizada de um primeiro Lá-Fora. No Interior, não há nenhum distanciamento, nenhuma colocação no mundo - nada exterior, porque não existe nele nenhuma exterioridade.

Como então se revela o Interior, se nem se assemelha a um mundo? Como a vida. A vida é sentida e experienciada imediatamente, coincidindo consigo em cada ponto de seu ser, totalmente imersa em si e, esgotando-se nesse sentimento de si, ela se cumpre como páthos  . A “maneira” pela qual o Interior revela-se a si mesmo, a vida se vive a si mesma, a impressão se impressiona imediatamente a si mesma, o sentimento se afeta a si mesmo - precedendo todo olhar e independentemente dele -, é a Afetividade. Assim, defrontamo-nos com uma primeira formulação da grande equação kandinskyana que sustentará tanto sua obra quanto sua pesquisa teórica:

Interior = interioridade = vida = invisível=páthos.

O Ser não é, portanto, noção unívoca. Duas dimensões o atravessam para dilacerar sua unidade primitiva (mesmo só tendo uma): a do visível, em que na luz do mundo as coisas se mostram a nós e são vividas por nós como fenômenos exteriores; a do invisível, em que na ausência desse mundo e de sua luz, antes mesmo de surgir esse horizonte de exterioridade que afasta tudo de nós e a pro-põe a nós a título de ob-jeto (significando o que é colocado adiante), a vida já se apossou de seu ser próprio, se apertando nessa prova interior imediata de si que é seu páthos, que faz dela a vida.

Original

Si on lit avec quelque attention les ouvrages théoriques de Kandinsky, on s’aperçoit que deux termes y interviennent sans cesse, concentrant sur eux tout le poids de l’analyse : ce sont ceux d’« intérieur » et d’« extérieur ». Le second grand écrit Point-Ligne-Plan, paru en 1926 à l’époque du Bauhaus, commence ainsi :

« Tout phénomène peut être vécu de deux façons.

Ces deux façons ne sont pas arbitrairement liées aux [14] phénomènes — elles découlent de la nature des phénomènes, de deux de leurs propriétés :

Extérieur-Intérieur. »

Cette déclaration liminaire doit dès l’abord être tirée au clair, car elle porte en elle le destin de la peinture abstraite, c’est-à-dire, nous l’établirons progressivement, celui de toute peinture et, bien plus, de toute forme d’art concevable. Que tout phénomène puisse être vécu de deux façons, extérieurement et intérieurement, c’est en tout cas ce dont nous faisons constamment l’expérience à propos d’un phénomène qui justement ne nous quitte jamais, à savoir notre propre corps. Car d’une part je vis intérieurement ce corps, coïncidant avec lui et avec l’exercice de chacun de ses pouvoirs : je vois, j’entends, je sens, je meus les mains et les yeux, j’ai faim, j’ai froid, de telle façon que Je suis ce voir, cet entendre, ce sentir, ce mouvement, cette faim, que je m’abîme tout entier dans leur pure subjectivité au point de ne pouvoir en rien me différencier d’eux — de cette faim, de cette souffrance, etc. D’autre part et dans le même temps, je vis extérieurement ce même corps puisque je suis capable de le voir, de le toucher, de me le représenter comme on se représente en général un objet, comme une réalité extérieure plus ou moins analogue aux autres objets.

Or cette propriété extraordinaire selon laquelle mon corps se donne à moi de deux façons différentes, « intérieurement » en tant qu’il s’identifie à mon être le plus profond, « extérieurement » en tant qu’il se pro-pose aussi à moi à la manière d’un ob-jet, Kandinsky l’affirme de tous les phénomènes. C’est [15] donc à propos de tout ce qui se montre à nous, et qu’on appelle justement un phénomène, qu’il y a lieu de distinguer les « deux façons » dont nous parlons. Ces deux façons [diese zwei Arten] ne concernent pas le contenu du phénomène mais précisément la manière dont ce contenu se montre à nous, dont il apparaît. Les « deux façons » sont deux modes d’apparaître. Elles sont ce que Kandinsky appelle « Extérieur » et « Intérieur ». L’Extérieur ne désigne donc pas d’abord pour lui quelque chose qui est extérieur, mais la façon dont ce quelque chose se manifeste à nous. Cette façon consiste justement dans le fait d’être placé à l’extérieur, posé devant, devant notre regard — de telle manière que c’est le fait même d’être posé devant, d’être placé à l’extérieur, c’est l’extériorité comme telle qui constitue ici la manifestation, la visibilité. L’extériorité en laquelle toute chose, tout contenu devient visible, devient un phénomène en qualité de phénomène extérieur, c’est le monde. Le monde est le monde visible parce que monde veut dire extériorité et que l’extériorité constitue la visibilité. Un phénomène extérieur n’est jamais vu ou connu en raison de ses propriétés particulières — parce qu’il est grand ou petit, structuré ou informe, etc. — mais parce qu’il est extérieur et pour cette raison seulement : parce que, appartenant au « monde » qui signifie l’extériorité, il se manifeste alors en elle, qui est la manifestation même. Voilà pourquoi Kandinsky dit que la « façon » n’est pas liée arbitrairement au phénomène, parce que c’est cette façon — ici l’extériorité — qui fait justement de lui un phénomène, qui fait qu’il se montre.

A la façon de se montrer comme phénomène [16] extérieur — à l’extériorité, à la visibilité du monde —, s’oppose selon Kandinsky une autre « façon », une façon de se donner plus ancienne en quelque sorte et plus radicale : l’Intérieur. Pas plus que l’Extérieur, l’Intérieur ne désigne quelque chose de particulier — qui se révélerait intérieurement — mais le fait même de se révéler de cette façon, l’intériorité comme telle. En quoi consiste celle-ci, cette « façon » la plus originelle de se donner, d’« être vécu » ? Question incontournable : « être vécu intérieurement », cette « façon » sur laquelle Kandinsky va bâtir son esthétique, ne saurait être affirmée simplement. Elle servirait alors de proie à une critique se bornant à en nier l’existence : « rien de tel n’existe ! », « l’intériorité est un mythe ! » De même, en d’autres termes, que l’Extérieur a fait la preuve de lui-même et que cette preuve, semble-t-il, c’est lui-même, c’est le monde tel qu’il surgit dans sa visibilité incontestable, qui ne cesse de m’offrir son spectacle et auquel, même lorsque je ferme les yeux, j’adhère encore par tous mes sens levés vers lui, de même l’Intérieur, si nous devons pouvoir le prendre comme le fondement de toute notre analyse, doit faire lui aussi la preuve de lui-même. Faire la preuve de lui-même, c’est-à-dire se montrer — mais de la façon qui est la sienne et qui n’est plus celle du monde. Par exemple l’exigence — celle du savant — adressée à l’Intérieur d’apparaître à la façon du monde comme un phénomène extérieur que l’on puisse voir avec les yeux du corps, ou du moins avec ceux de l’esprit, serait absurde. De cette façon, comme quelque chose qui est là devant et que pour cette raison on peut voir, l’Intérieur ne se montrera jamais. Il est [17] l’invisible, ce qui ne se laisse jamais voir dans un monde ni à la manière d’un monde. Il n’y a pas de « monde intérieur ». L’Intérieur n’est pas la réplique tournée vers le dedans d’un premier Dehors. Dans l’Intérieur, il n’y a aucune mise à distance, aucune mise en monde — rien d’extérieur, parce qu’il n’y a en lui aucune extériorité.

De quelle façon alors se révèle l’Intérieur si ce n’est en un monde ni comme un monde ? De la façon de la vie. La vie se sent et s’éprouve elle-même immédiatement en sorte qu’elle coïncide avec soi en chaque point de son être et que, tout entière immergée en soi et s’épuisant dans ce sentiment de soi, elle s’accomplit comme un pathos. La « façon » dont l’Intérieur se révèle à lui-même, dont la vie se vit elle-même, dont l’impression s’impressionne immédiatement elle-même, dont le sentiment s’affecte lui-même — avant tout regard et indépendamment de lui —, c’est l’Affectivité. Ainsi sommes-nous en présence d’une première formulation de la grande équation kandinskienne qui va supporter son œuvre aussi bien que sa recherche théorique :

Intérieur = intériorité = vie = invisible = pathos.

L’Etre n’est donc pas une notion univoque. Deux dimensions le traversent et viennent déchirer son unité primitive (pour autant qu’il en possède une) : celle du visible où dans la lumière du monde les choses se donnent à nous et sont vécues par nous comme des phénomènes extérieurs; celle de l’invisible où, en l’absence de ce monde et de sa lumière, avant même que surgisse cet horizon   d’extériorité qui met toute chose à distance de nous-même et nous la [18] pro-pose à titre d’ob-jet (ob-jet veut dire : ce qui est posé devant), la vie s’est déjà emparée de son être propre, s’étreignant elle-même dans cette épreuve intérieure et immédiate de soi qui est son pathos, qui fait d’elle la vie.