Página inicial > Fenomenologia > Henry (ESV) – Que chamaremos "cristianismo"?

Eu Sou a Verdade

Henry (ESV) – Que chamaremos "cristianismo"?

Introdução

domingo 12 de setembro de 2021

HENRY, Michel. Eu Sou a Verdade. Por uma filosofia do cristianismo. Tr. Carlos Nougué. São Paulo: É Realizações, 2015

Tradução

Nosso propósito não é de nos perguntar se o cristianismo é "verdadeiro" ou "falso", estabelecer, por exemplo, a primeira destas hipóteses. O que aqui está em questão é, todavia, aquilo que o cristianismo considera como a verdade, o gênero de verdade que propõe aos homens, que se esforça de lhes comunicar não como uma verdade teórica e indiferente, mas como esta verdade essencial que lhes convém por alguma afinidade misteriosa, a ponto de ser a única capaz de garantir sua salvação. É esta forma de verdade que circunscreve o domínio do cristianismo, o meio onde se move, o ar, se se ousa   dizer, que respira, que se tentará compreender. Pois existem muitas espécies de verdades, muitas maneiras de ser verdadeiro ou falso. E talvez também de escapar do conceito de verdade que domina o pensamento moderno e que, tanto nele mesmo como por suas implicações múltiplas, determina o mundo onde vivemos. Antes de tentar uma elucidação sistemática do conceito de verdade, a fim de reconhecer a verdade insólita e encoberta própria ao cristianismo, verdade em total oposição com aquela que tomamos ingenuamente hoje em dia como o protótipo de toda verdade concebível, se coloca um problema prévio. Trata-se de delimitar de maneira ao menos provisória aquilo que será indagado sobre a natureza da verdade que ele professa: que chamaremos então "cristianismo"?

Aquilo que se encontra expresso em um conjunto de textos designados sob o título de Novo Testamento, é isto que se entende por cristianismo - e isto de todo direito, assim parece. Pois onde se poderia investigar o "conteúdo" do cristianismo a fim de refletir sobre isto que ele considera como verdade, se não no corpus   constituído pelos Evangelhos, os Atos dos Apóstolos, as epístolas destes, de Paulo, de Tomé, de Pedro, de João, de Judas, e enfim pelo Apocalipse, atribuído ao mesmo João? Não é sem dúvida a partir deste corpus que foi elaborado este conjunto de dogmas que definem o cristianismo? O conhecimento do cristianismo - e assim toda reflexão sobre sua possível "verdade" - não passa por aquela destes textos? Somente sua análise minuciosa pode conduzir, assim parece, à inteligência disto que é verdadeiramente o cristianismo em seu núcleo essencial.

A abordagem do cristianismo a partir do corpus de textos onde se propõe seu conteúdo apresenta dois caracteres. Em primeiro lugar, implica em pesquisas em número infinito concernentes a estes textos mesmos e o que se pode chamar em geral de sua autenticidade. De quando eles datam, de quando datam em particular aqueles que serão reputados canônicos e sobre os quais se fundará o dogma? Por quem foram redigidos? Por testemunhas oculares dos estranhos eventos que relatam e que gravitam à volta da existência do Cristo? Ou bem mais tarde por pessoas que teriam pelo menos entendido o relato destas testemunhas? Ou bem, a uma época ulterior, elementos esparsos, tomados a uma tradição oral incerta, provenientes de fontes heterogêneas, fizeram objeto de uma verdadeira reconstrução, de um amalgama, de uma invenção, a ponto que a ideia mesma de um modelo inicial se tornou contestável e que em presença de textos remanejados, arrumados ou simplesmente fabricados, objeto finalmente de um imaginário coletivo muito mais que recensão de eventos que teriam sido realmente produzidos, aquela das ações do Cristo e de sua palavras fundamentais, mas de uma simples mitologia?

Muitas outras questões, na verdade, se colocam a respeito destes textos. Em que língua foram escritos? Em grego, segundo a interpretação mais frequente, ou bem em hebraico, ou ainda em uma língua local? Ora uma língua não é apenas um meio de comunicação separado disto que tem por missão comunicar; investida de significações múltiplas que não se reduzem àquelas da linguagem a falar propriamente, a língua veicula os esquemas práticos e cognitivos que definem uma cultura. Se se trata do grego, é todo o pensamento grego - um pensamento que não é somente grego mas que vai reinar sobre o mundo ocidental em seu conjunto - que pesa sobre o cristianismo das origens. As interpretações aristotélicas e platônicas que, dos Padres da Igreja aos pensadores da Idade Média, vão determinar a teologia cristã, são fundamentadas no princípio. Se as primeiras redações são em aramaico ou em hebraico - neste caso desapareceram totalmente -, a referência incontornável do Novo ao Antigo Testamento, que ninguém contesta, seria mais decisiva ainda. A pretensão que foi aquela de Paulo de introduzir diretamente no cristianismo em fazendo senão a economia do judaísmo, pelo menos de suas práticas e da lei - em resumo de se apresentar como o Apóstolo dos Gentios, dos incircuncisos -, se presta a controvérsias. Se os escritos originais eram em hebraico, a referência ao Antigo Testamento não se limita a uma simples condição histórica, ela reside no Novo Testamento ele mesmo, a ponto que este, em lugar de ser destacado do Antigo como será na heresia de Marcion, arrisca ao contrário de aparecer como uma variante entre outros escritos judaicos. Estes últimos, dispostos aliás segundo estratos diversos, deram lugar, sabe-se, a comentários múltiplos, a comentários de comentários e o cristianismo seria apenas um dentre eles - seus heróis, a simples reaparição de personagens tendo já desempenhado um papel sobre a cena do Antigo Testamento, vide a realização de entidades metafísico-religiosas cuja pesquisa erudita poderia seguir a progressão e os avatares.

O segundo caráter de uma abordagem do cristianismo a partir do corpo dos textos evocados, não é unicamente de conduzir a pesquisas sem fim. De sorte que aquele que desejasse interrogar o Evangelho sobre a salvação de sua alma não deveria somente, segundo a nota irônica de Kierkegaard  , esperar a aparição do último livro sobre a questão, ele deveria ainda, em última instância, se lançar em estudos que a morte certamente viria interromper antes que pudesse obter deles, de tanto saber e exegese, a primeira palavra de uma resposta a única questão que importa. E isto porque aquilo do qual depende a resposta, a verdade do cristianismo, não tem precisamente nenhuma relação com a verdade que decorre da analise dos textos e de seu estudo histórico.

Original

Notre propos n’est pas de nous demander si le christianisme est « vrai » ou « faux », d’établir par exemple la première de ces hypothèses. Ce qui sera ici en question c’est plutôt ce que le christianisme considère comme la vérité, le genre de vérité qu’il propose aux hommes, qu’il s’efforce de leur communiquer non pas comme une vérité théorique et indifférente, mais comme cette vérité essentielle qui leur convient par quelque affinité mystérieuse, au point qu’elle est la seule capable d’assurer leur salut. C’est cette forme de vérité qui circonscrit le domaine du christianisme, le milieu   où il se meut, l’air si l’on ose dire qu’il respire, qu’on tentera de comprendre. Car il y a bien des sortes de vérités, bien des manières d’être vrai ou faux. Et peut-être aussi d’échapper au concept de vérité qui domine la pensée moderne et qui, tant en lui-même que par ses implications multiples, détermine le monde où nous vivons. Avant de tenter une élucidation systématique du concept de vérité, afin de reconnaître la vérité insolite et enfouie propre au christianisme, vérité en totale opposition avec celle que nous prenons naïvement aujourd’hui pour le prototype de toute vérité concevable, un problème préalable se pose. Il s’agit de délimiter de façon au moins provisoire ce qui sera interrogé sur la nature de la vérité qu’il professe : qu’appellerons-nous donc « christianisme » ?

Ce qui se trouve exprimé dans un ensemble de textes désignés sous le titre de Nouveau Testament, c’est là ce qu’on entend par christianisme – et cela à bon droit semble-t-il. Car où pourrait-on chercher le « contenu » du christianisme afin de réfléchir sur ce qu’il considère comme la vérité, sinon dans le corpus constitué par les Évangiles, les Actes des Apôtres, les épîtres de ceux-ci, de Paul, de Jacques, de Pierre, de Jean, de Jude, et enfin par l’Apocalypse, attribuée au même Jean ? N’est-ce point à partir de ce corpus qu’a été élaboré cet ensemble des dogmes qui définissent le christianisme ? La connaissance du christianisme – et ainsi toute réflexion sur sa possible « vérité » – ne passe-t-elle pas par celle de ces textes ? Seule leur analyse minutieuse peut conduire, semble-t-il, à l’intelligence de ce qu’est véritablement le christianisme en son noyau essentiel.

L’approche du christianisme à partir du corpus de textes où se propose son contenu présente deux caractères. En premier lieu, elle implique des recherches en nombre infini concernant ces textes mêmes et ce qu’on peut appeler en général leur authenticité. De quand datent-ils, de quand datent en particulier ceux qui seront réputés canoniques et sur lesquels se fondera le dogme ? Par qui ont-ils été rédigés ? Par des témoins oculaires des événements étranges qu’ils relatent et qui gravitent autour de l’existence du Christ ? Ou bien plus tard par des gens qui auraient du moins entendu le récit de ces témoins ? Ou bien, à une époque bien ultérieure, des éléments épars, empruntés à une tradition   orale incertaine provenant de sources hétérogènes, ont-ils fait l’objet d’une véritable reconstruction, d’un amalgame, d’une invention, au point que l’idée même d’un modèle initial devient contestable et que, en présence de textes remaniés, arrangés ou tout simplement fabriqués, objet finalement d’un imaginaire collectif beaucoup plus que recension d’événements qui se seraient réellement produits, on se trouve en présence non pas d’un mémorial sacré, celui des actions du Christ et de ses paroles fondamentales, mais d’une simple mythologie ?

Bien d’autres questions, à vrai dire, se posent au sujet de ces textes. Dans quelle langue ont-ils été écrits ? En grec, selon l’interprétation la plus fréquente, ou bien en hébreu, ou encore dans une langue locale ? Or une langue n’est pas seulement un moyen de communication séparé de ce qu’il a pour mission de communiquer : investie de significations multiples qui ne se réduisent pas à celles du langage à proprement parler, la langue véhicule les schèmes pratiques et cognitifs qui définissent une culture. S’il s’agit du grec, c’est toute la pensée grecque – une pensée qui n’est pas seulement grecque mais qui va régner sur le monde occidental dans son ensemble – qui pèse sur le christianisme des origines. Les interprétations aristotéliciennes et platoniciennes qui, des Pères de l’Église aux penseurs du Moyen Age, vont déterminer la théologie chrétienne, sont fondées dans le principe. Si les premières rédactions sont en araméen ou en hébreu – en ce cas elles ont totalement disparu –, l’incontournable référence du Nouveau à l’Ancien Testament, que personne ne conteste, serait plus décisive encore. La prétention qui fut celle de Paul d’introduire directement au christianisme en faisant sinon l’économie du judaïsme, du moins celle de ses pratiques et de la loi – bref de se présenter comme l’Apôtre des Gentils, des incirconcis –, prête à controverse. Si les écrits originaux étaient en hébreu, la référence à l’Ancien Testament ne se limite pas à une simple condition historique, elle habite le Nouveau Testament lui-même, au point que celui-ci, au lieu d’être détaché de l’Ancien comme il le sera dans l’hérésie de Marcion, risque au contraire d’apparaître comme une variante parmi d’autres des écrits judaïques. Ces derniers, disposés d’ailleurs selon des strates diverses, ont donné lieu, on le sait, à des commentaires multiples, à des commentaires de commentaires et le christianisme ne serait que l’un d’entre eux – ses héros, la simple réapparition de personnages ayant déjà joué leur rôle sur la scène de l’Ancien Testament, voire la réalisation d’entités métaphysico-religieuses dont une recherche érudite pourrait suivre le cheminement et les avatars.

Le second caractère d’une approche du christianisme à partir du corpus des textes évoqués, ce n’est pas uniquement de conduire à des recherches sans fin. En sorte que celui qui voudrait interroger l’Évangile sur le salut de son âme ne devrait pas seulement, selon la remarque ironique de Kierkegaard, attendre la parution du dernier livre sur la question, il lui faudrait encore, toutes affaires cessantes, se lancer dans des études que la mort à coup sûr viendrait interrompre avant qu’il ait pu obtenir d’elles, de tant de savoirs et d’exégèses, le premier mot d’une réponse à la seule question qui importe. Et cela parce que ce dont dépend la réponse, la vérité du christianisme, n’a précisément aucun rapport avec la vérité qui relève de l’analyse des textes ou de leur étude historique.


Ver online : C’est moi la vérité